Recentemente, tenho notado um padrão alarmante. Cada vez mais profissionais, palestrantes e influenciadores estão se apegando à teoria de que o trauma infantil é a razão pela qual os homens cometem atos de violência, tais como abuso doméstico, abuso sexual e estupro

Este não é um fenômeno novo. Há milênios temos desculpado a violência masculina. Nós a normalizamos, a minimizamos; até a glorificamos em filmes, literatura e canções. A violência masculina tem sido repaginada como justeza, justiça e honra. Grande parte da nossa história global é de homens matando uns aos outros, colonizando países, fazendo guerra uns aos outros, violando e abusando de mulheres e crianças, escravizando populações inteiras…

O que estou vendo agora é um movimento acadêmico para explicar ou desculpar a violência masculina (especialmente contra mulheres e crianças) argumentando que o infrator teve uma infância difícil ou traumática.

Neste artigo, vou expor os principais argumentos para explicar por que isso é falso e por que isso está acontecendo. Meus pontos principais serão:

  1. Trauma de infância não causa atitudes criminosas na idade adulta;
  2. O “trauma de infância” é usado de forma diferente contra homens e mulheres;
  3. As estruturas EAI (Experiências Adversas na Infância) foram refutadas e não devem ser usadas para explicar agressões da violência masculina;
  4. Essa é mais uma desculpa elaborada para simpatizar com os agressores do sexo masculino e forçar mulheres a assumirem a responsabilidade pelas respostas e ações dos homens;

Certo. Estão sentados e confortáveis? Então vamos começar.

Trauma de infância não causa atitudes ilícitas na idade adulta

Esse tem que ser o contra-argumento mais óbvio para os que afirmam que os homens cometem atos violentos por causa de sua infância terrível. O trauma da infância não causa atitudes ilícitas na idade adulta. É discutível que, se fosse mesmo assim, a maioria de todos os adultos que cometem atos violentos seriam mulheres.

Globalmente, as meninas estão sujeitas a muito mais traumas de infância do que os meninos.

Isto inclui casamento forçado, MGF, gravidez forçada, abortos, estupro, estupro corretivo, abuso sexual, abuso físico, negligência, tráfico sexual e exploração, citando apenas algumas das opressões misóginas a que as meninas são submetidas.

Se os traumas infantis realmente causam atitudes violentas na vida adulta, por que, de acordo com o FBI (2019), 97% de todos os agressores violentos são homens? E por que, de acordo com o MOJ, 96% de todos os abusadores sexuais e 99% de todos os assassinos são homens? Onde estão todas as vítimas femininas zangadas, injustiçadas, mal compreendidas, assassinas e abusadoras? Parece que está faltando alguém aqui…

Essa conta não fecha, não é mesmo?

De uma perspectiva mais ampla, não há evidências de que ser abusado na infância significa que você vai continuar abusando dos outros na vida adulta. O mais interessante aqui é que alguns estudos que tentaram explorar isso descobriram que menos de 1% das vítimas de abuso abusam dos outros, mas quando perguntamos aos homens na prisão por que eles abusam dos outros, mais de 55% deles dizem que foi porque foram abusados quando crianças (MOJ, 2014). Isso é particularmente verdadeiro para os autores de abusos domésticos, que têm a tendência de relatar que foram abusados na infância ou testemunharam abusos domésticos de suas mães.

Embora eu não esteja necessariamente contestando isso e ainda que eu acredite que muitos (se não todos) desses homens foram submetidos a abusos na infância, não aceito isso como uma razão pela qual eles fizeram uma escolha de livre arbítrio de posteriormente abusar de outro ser humano (estatisticamente, uma mulher ou menina).

O fato de que eles foram abusados na infância, ou tiveram outros traumas graves para enfrentar, não é razão ou explicação para seus crimes contra mulheres e meninas. No momento em que você começa a introduzir sua infância como motivo, você diminui completamente sua capacidade, escolha e agência — algo que a maioria desses infratores tem em abundância.

Sabe como dá para ver que eles estão decidindo livremente abusar de mulheres e meninas, e que sua infância não tem nada a ver com isso?

Porque eles não violam, abusam, traficam e controlam os homens. Eles sabem que não devem atacar seu chefe. Eles não abusam de seus irmãos. Eles não violam seu melhor amigo no bar. Eles não fazem ‘grooming’ com os colegas. Eles não ameaçam matar os pais.

Eles abusam e controlam deliberadamente mulheres e meninas. É uma escolha. É sempre uma escolha. É uma decisão consciente de intimidar e abusar de alguém específico, não é?

Os mesmos homens que dizem para as suas esposas e namoradas que “não conseguem evitar”, que “é só relaxar” e que “não conseguem ver mais nada”, certamente parecem capazes de manter seus empregos e amizades, onde ninguém acha que ele faria mal a uma mosca.

Por que isso é importante? Porque significa que os mesmos homens que afirmam não ter controle, na verdade têm imenso controle sobre quando e contra quem agridem.

O trauma da infância é usado de maneira diferente contra homens e mulheres

Isso é importante. O trauma da infância é usado para desculpar os homens e incriminar as mulheres. As mulheres que lerem isto, que já tentaram denunciar à polícia ou acabaram na vara de família, saberão exatamente do que estou falando.

Os homens usam os traumas infantis para desculpar, minimizar, enquadrar e contextualizar seus comportamentos abusivos. Seus advogados e policiais explicam que ele não consegue ajudar por causa da maneira como foi educado. Que ele está traumatizado e precisa de ajuda para seus traumas de infância. Que ele está lutando e precisa de compreensão e tempo.

Já as mulheres certamente dirão que quando seus traumas de infância são trazidos à tona num contexto oficial, não é por uma boa razão. Não é para desculpá-las ou para enquadrá-las como alguém que precisa de perdão e compaixão.

Mas não MESMO.

As mulheres sabem que sua infância é colocada na mesa por uma razão e uma razão apenas:

Para mostrar que elas são mentalmente instáveis.

Traumas de infância são a última carta na manga para sair da prisão para os homens; e são um bilhete de ida para uma avaliação psiquiátrica e uma avaliação familiar para as mulheres.

O trauma infantil feminino é usado para derrubá-las e o trauma infantil masculino é usado para desculpá-los e expiá-los. Isto está, sem dúvida, ligado à sociedade hipermisógina que habitamos, que ignora e banaliza o sofrimento e os traumas das mulheres e reordena tudo isso como distúrbios de personalidade e histeria.

Muito trabalho acadêmico tem sido conduzido para explorar tópicos relacionados a esse assunto. Um estudo de 2018 mostrou que quando as mulheres têm sintomas cardíacos em departamentos de emergência, elas ficam em média 4 horas a mais sem tratamento ou exame do que os homens com exatamente os mesmos sintomas. Os pesquisadores entrevistaram médicos e concluíram que mesmo os médicos mais habilidosos que trabalham em departamentos de emergência eram influenciados por mitos misóginos de que as mulheres exageram suas dores e sintomas físicos. Isso faz com que o sofrimento e a dor nos homens sejam levados muito mais a sério do que nas mulheres. E faz com que muito mais mulheres morram de ataques cardíacos do que homens.

Esse efeito simplesmente se ramifica por muitas experiências diferentes de feminilidade e inclui a forma como posicionamos os traumas da infância das mulheres como busca exagerada de atenção e problemas de saúde mental, enquanto os traumas da infância dos homens são validados e considerados como algo que impacta seu comportamento e a sua tomada de decisões.

As estruturas EAI foram refutadas e não devem ser usadas para explicar a violência masculina

Escrevi artigos e fiz várias palestras, vídeos do YouTube e webinars sobre a estrutura das EAI que estão sendo inventadas, por isso vou poupá-las(os) de ler tudo novamente.

Se você não tem ideia do que são EAI, assista a esse vídeo e depois volte: https://youtu.be/yE-pncpeGw4

Certo, então para aqueles que sabem que as EAI eram um conjunto muito simples de perguntas utilizadas para pesquisa epidemiológica em nível populacional, que os autores originais literalmente imploraram às pessoas que parassem de usá-las com trauma e saúde mental…

Notei que alguns profissionais, palestrantes e acadêmicos começaram a falar publicamente sobre umas tais “pontuações EAI” que faziam com que os homens se tornassem perpetradores de violência doméstica, estupradores e até pedófilos.

Isso me preocupa muito, não só porque, em primeiro lugar, a estrutura EAI não tem validade, mas também porque há uma corrente subjacente ali para desculpar ou explicar a violência masculina usando a adversidade infantil.

Temos que ser absolutamente claros nisto, como psicólogos, assistentes sociais, agentes prisionais, policiais, formuladores de políticas e acadêmicos:

Traumas infantis e experiências adversas de vida não causam estupro e abuso. Milhões de pessoas que têm uma infância devastadora nunca prejudicarão ninguém enquanto viverem. Não há relação causal entre trauma de infância, EAI e ofensas (por mais que o Departamento da Educação e o Departamento de Saúde tentem fazer desenhos animados bobos sobre este relacionamento inventado).

Falamos tanto em estar “informados sobre traumas” e “basear em pontos fortes” e em acreditar na “resiliência” e na “capacidade de mudança”. E ainda assim, aqui estamos sendo encorajados a simplesmente culpar a infância de homens violentos que puderam aparentemente manter sua violência para si mesmos em todos os outros momentos, exceto quando violentam sua namorada ou abusam de seu filho.

Estamos dando mais uma desculpa para eles. Nunca causaremos mudanças sociais se continuarmos a despejar desculpas aos pés de homens violentos para justificar a violência masculina.

Esta é mais uma desculpa elaborada para simpatizar com os agressores masculinos e forçar as mulheres a assumirem a responsabilidade pelas respostas e ações dos homens

Em última análise, isso nos leva a culpar mulheres e meninas pela violência dos homens. Se cada vez que um homem estupra, abusa ou mata uma mulher ou menina, nós olharmos para trás, para sua infância, e então sugerimos que ele cometeu esses crimes por causa de quão horrível foi sua infância, nós removemos sua agência e sua culpabilidade.

O que se segue é que esperam que mulheres e meninas devem ajudar, apoiar e compreender esses homens “perturbados” invés de considerá-los responsáveis por suas próprias escolhas e ações violentas. Em vez de processá-los, responsabilizá-los e falar sobre a violência masculina, nossa sociedade se retrai a simpatizar e apoiar a violência masculina como se fosse a forma natural do mundo, que os homens não conseguem fazer nada para mudar isso.

Suas vítimas (principalmente mulheres e meninas) são então enquadradas como responsáveis não apenas pela violência masculina, mas responsáveis por ajudar os homens a serem homens melhores. As narrativas em torno disto já estão bem embutidas e as mulheres e meninas muitas vezes sentem um senso de dever de “ajudar” homens violentos e abusivos a serem melhores ou a buscarem ajuda. Mesmo as mulheres que escapam de perigos sérios de ex violentos e membros da família muitas vezes se sentem culpadas por não “ajudá-los o bastante”.

Já trabalhei com centenas de mulheres que, quando finalmente separam desses homens abusivos e violentos, são avisadas por eles de que os mesmos “precisam de ajuda” e que eles “buscarão aconselhamento” e “precisam de seu apoio”.

As mulheres são condicionadas a acreditar que isso é verdade e que seu papel é apoiar abnegadamente um homem violento enquanto ele descobre o princípio mais básico de uma relação mútua: não prejudicar os outros.

Os homens muitas vezes se posicionam no patriarcado como aqueles que têm a agência, o cérebro, o poder, a força, o dinheiro, as oportunidades, as ideias e as escolhas. E, ainda assim, quando se trata de sua própria agressão contra mulheres e meninas, nós os infantilizamos como se fossem pequenos, manipuláveis, com 2 anos de idade, que assistiram a um desenho animado e depois copiaram sem nenhum entendimento de contexto ou conteúdo.

Quando vamos finalmente parar de ouvir as desculpas dos homens sobre sua violência?

“Eu estava estressado”

“Eu estava com ciúmes”

“Fui abusado quando era criança”

“Eu tive uma vida traumática”

“Fui despedido”

“Eu estava cansado”

“Eu estava deprimido”.

E daí?

Isso não dá licença para cometer crimes violentos e fingir que não tinha agência ou escolha.

Precisamos parar de discutir suas infâncias e seus traumas passados como razões ou fatores contribuintes em seus crimes violentos.

Toda vez que os criminosos do sexo masculino escolhem estuprar, abusar ou assassinar, eles tomam uma decisão ativa e ponderada e a culpa não é está na sua infância.


Jessica Eaton Taylor FRSA é autora e graduada em psicologia forense britânica. Ela foi professora sênior de psicologia forense e criminológica na Universidade de Derby.

Email: jessica@victimfocus.org.uk
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