A criança generizada
A criança generizada

De onde vem o sentido de gênero de uma criança?

Balão de Chá de Revelação: Menino ou Menina?

Existem certas diferenças biológicas entre garotas e garotos. Primeiramente, garotas têm cromossomos XX e garotos XY, exceto em raras condições de intersexo. Você não pode mudar seus cromossomos. Não importa se você gosta de princesas ou piratas, se arqueólogos exumarem seus ossos daqui a 200 anos, eles saberão dizer se você era um homem ou uma mulher. Está no seu DNA. Garotas e garotos nascem não somente com genitálias diferentes, mas com níveis diferentes de hormônios. Mas, à medida em que o debate natureza/criação se intensifica, fico cada vez mais convencida de que meninas e meninos teriam muito menos diferenças se parássemos de jogá-los em caixas cor de rosa e azuis.

Um estudo conduzido pela Universidade de Indiana concluiu que não há diferenças nas habilidades atléticas de crianças pré-puberes. Eles analisaram os dados de cerca de 2 milhões de crianças nadadoras e descobriram que não há diferenças entre garotas e garotos de 8 anos de idade, e apenas uma pequena diferença até a adolescência, quando a puberdade começa.

“A garota média é um pouco mais baixa que o garoto médio em todas as idades até a adolescência. Ela se torna mais alta logo após os 11 anos, porque seu surto adolescente ocorre 2 anos antes do garoto. Aos 14 anos, ela é superada novamente em altura pelo garoto médio, cujo surto adolescente já começou, enquanto o dela está quase terminando. Do mesmo modo, uma garota média pesa pouco menos que um garoto médio ao nascer, é igual a ele aos 8 anos, torna-se mais pesada aos 9 ou 10 anos, e permanece assim até os 14,5 anos.”

Encycolpædia Britannica

Então, as diferenças físicas entre garotas e garotos pré-púberes é muito pequena.

E sobre as diferenças psicológicas e de temperamento?

Os garotos são naturalmente pré-dispostos a serem mais barulhentos, mais bagunceiros, mais fisicamente agressivos, e garotas são mais empáticas, calmas, criativas e reclamonas?

Enquanto certamente vemos algumas diferenças no comportamento, é difícil dizer em que extensão eles são biológicos ou culturais  — porque começamos a generizar nossas crianças antes delas nascerem.

Acha que estou exagerando?

Se flexionando como o papai? 

Recentemente, assisti a um episódio do programa da Marie Kondo (bem, obviamente, tudo ao invés de limpar). Um casal estava esperando seu primeiro bebê e enquanto eles o olhavam se movendo pelo ultrassom, eles fizeram uma piada de que o bebê estava “se flexionando como o papai”. Meus ouvidos se atentaram imediatamente, e o bebê, é claro, era um menino. Embora obviamente não exista nenhuma razão para que o feto de uma menina possa não se flexionar tão eficazmente quanto sua contraparte masculina, esse não é um verbo que tendemos a associar a meninas.

A pequena diferença entre meninos e meninas ao nascimento é amplificada com o passar do tempo, à medida que a sociedade, professores e pais — frequentemente não intencionalmente — reforçam os estereótipos de gênero.

Um estudo mostrou que as mães de meninos recém-nascidos tendem a descrevê-los como “mais fortes” apesar de não existir nada que sequer sugira que isso é real. Outro mostrou que, quando as mães estimavam a capacidade dos bebês de descer ladeiras, mães de meninas subestimavam seu desempenho, e mães de meninos o superestimavam. Esse viés não tem base factual. Meninas e meninos têm marcos motores iniciais, como alcançar, sentar, engatinhar e encaminhar aproximadamente nas mesmas idades.

Então, onde as crianças pequenas percebem o comportamento de gênero?

Vestindo a Criança Generizada

Eu decidi visitar a grande loja Primark e fotografar roupas de crianças por lá. As fotos a seguir foram todas retiradas no mesmo dia. Aqui estão algumas roupas de meninos.

E aqui algumas roupas de meninas.

O “pequeno mas selvagem” do menino é “tipo uma grande coisa”. Ele é “um cara legal” que sabe como “fazer barulho” e ele está “sempre faminto”. “O pequeno super herói da mamãe” cresce sabendo que “eu sou o futuro”.

“A garotinha do papai” “se parece muito com a mamãe”. Ela é “dócil o tempo inteiro” e vai “continuar sonhando” até que chegue no “é hora de brilhar”. De acordo com a Primark, meias com babados e rendas são “essenciais” para uma garota, e ainda por cima, espera-se que a criança cochile confortavelmente em uma peça de roupa de bebê com um maldito tutu anexado a ela!

Como se isso não fosse o suficiente, aqui vão algumas opções de roupas de banho.

Socializando uma Criança Generizada

Além da vida doméstica, dos clubes e escolas, o material de leitura de uma criança tem um grande papel em sua socialização.

Para todas as edições da First News ou Aquila, há uma quantidade menor de publicações. Pense na The Economist e a New Scientist cercadas de cópias de revistas de rapazes e Cosmos. Confira as prateleiras de revistas em suas bancas locais. Eu fui a um Tesco próximo, no mesmo dia que visitei a Primark, para ver o que ofereciam.

Aqui estão as revistas das garotas. Elas são em tons cor de rosa, pastéis, roxos e azul bebê, adornadas com brilho e uma pitada de amizade e carinho; os brindes grátis são bijuterias baratas de plástico, diários secretos brilhantes e inúmeros adesivos de unicórnio. Essa semana não vi maquiagem nem esmalte de unha, mas esses não são brindes grátis incomuns.

A revista Animais e Você (extrema direita) abraça uma infinidade de corações rosa e cavalos voadores brilhantes. Por que? É uma revista sobre animais! Quantos garotos olham desejando a capa, mas nunca se atrevem a pedir a revista, por receberem a mensagem alta e clara que gostar de gatos fofinhos é algo restrito a garotas?

As revistas dos meninos têm cores fortes e primárias. A capas prometem conteúdos de aventura e heroísmo; existem exércitos de robôs a serem aniquilados e vilões a serem destruídos; os brindes grátis são distintivos e jogos “épicos”, mas a maioria são brindes relacionados a armas como aparatos para atirar frisbees ou bolas de esponja.

A revista Paw Patrol (extrema direita) removeu a única personagem feminina das suas capas. Presumidamente seus editores estavam preocupados em não colocar os garotos de fora, porque da mesma forma que gatinhos são para garotas, ação e aventura são restritas a garotos.

Livros e DVDs não são diferentes. Dei uma checada no que está à venda na minha loja local.

De novo e de novo, é a história da fada e do super herói, da princesa e do pirata.

Pingo. Pingo. Pingo.

Henry horrível quebra a maldição dos canibais! Bertie, o pirata sujo, brande seu facão; monstros criam caos e estrelas do futebol são construídas.

Barbie joga os cabelos para trás enquanto posa com o Pégaso; Sabrina, a fada, espalha o presente de sonhos bons e o “Best Friends Club” compartilha histórias de “blushes e paixões”.

Pingo. Pingo. Pingo.

E, perdoe meu espanhol, que porra é essa que fizeram com Dora, a Aventureira? Dora foi uma firme personagem favorita das minhas crianças mais velhas. Com seu cabelo curto e sua pequena barriguinha, nunca aceitou bobagem de ninguém nem ficou perturbada por nada. Agora ela tem cabelos longos e um sorriso Colgate, e está usando brincos e um vestido com decote em V.

Claro, garotas podem escolher pedir revistas da “sessão dos garotos”. Meus filhos mais velhos eram obcecados com Ben 10 e o mais novo tem um amigo que folheava feliz as páginas de Animais e Você. Nessa época, as sessões das “garotas” e dos “garotos” raramente eram divididas, apesar de que um pequeno vislumbre dizia às crianças quem “pertencia” a que. A sessão das garotas, se você espera que gostem, provavelmente estavam disponíveis em rosa.

As escolhas menos convencionais são mais difíceis para crianças menos confiantes; a criança que valoriza a importância de exercer o jogo do gênero faz com essas escolhas as façam se sentir desconfortáveis.

Pergunte a si mesmo o que poderia acontecer quando essa criança for introduzida aos pinguins GIRES, ao Apresentando Teddy e Eu sou Jazz? O que acontece se a criança é induzida a acreditar que suas escolhas em revistas e vestuário podem — apenas podem — significar que na verdade ela nasceu no sexo “errado”?

Celebrando a Criança Generizada

Já tentou achar um cartão de aniversário para uma garota que tenha uma bola de futebol? Eu entrei na banca de jornal onde carrego meu cartão Oyster e dei uma olhada nos cartões em exibição. Feliz aniversário, criança generizada!

Rosa, rosa, rosa. Corações e flores, bugigangas e espartilhos, babados e tiaras, é disso que as garotas são feitas. Faça um pedido, garota! Enquanto isso, o pirata encontrou o tesouro e se tornou o Homem-Aranha, mas eu adoraria ver um cartão de aniversário que diga a uma garota que ela é “incrível, corajosa e inteligente”. Quanto aos dois cartões no canto superior esquerdo, ambos oferecem conselhos. Dizem ao garoto para “se divertir de maneira emocionante o dia inteiro” e à garota a “vestir sua roupa favorita e dar uma voltinha”.

Limpando a Criança Generizada

Acho que a imagem é o suficiente, você não?

Deixem Brinquedos serem Brinquedos

Apesar de eu não ter falado sobre brinquedos nessa peça — esse assunto realmente precisa de um artigo exclusivo — o que me inspirou escrever isso foi ver um anúncio feito por uma organização que eu sempre admirei, Let Toys be Toys (LTBT — Deixem Brinquedos serem Brinquedos). A LBTB sempre lutou contra a estereotipização dos brinquedos infantis, desencorajando a generização que é criar sessões “garotos” e “garotas” em lojas de brinquedos.

“As crianças deveriam se sentir livres para brincarem com os brinquedos que mais interessam a elas. Não é hora das lojas pararem de limitar a imaginação das crianças dizendo as elas com o que elas devem brincar?”

Site do LBTB

Então, imaginem minha surpresa quando o LBTB fez esse pronunciamento no Twitter alguns dias atrás?

“Jamie” por @ollypike: “Certamente não existem muitos livros para crianças sobre identidades transgêneras e dizem que esse é muito gentil e sensível” Para uma variedade e livros infantis com temas transgêneros visite o @LetterBoxLib 

Eu me senti completamente horrorizada. Será que eles foram hackeados? Considerando a época em que foi postado, era Dia da Mentira (1° de abril) — será que foi uma piada de mau gosto?

Algumas horas depois o Let Toys Be Toys postou outro Tweet, dessa vez dizendo que não há um único jeito ou um jeito certo de ser uma garota.

No entanto, ao mesmo tempo, eles estavam defendendo o tweet anterior, comentando, “Let Toys Be Toys tem apoiadores com visões variadas sobre gênero, mas crucialmente nos unimos na mensagem de que estereótipos de gênero estreitos são ruins para todos.”

Tudo isso soa muito bem, mas não se pode apoiar as duas visões. Isso não faz sentido.

Let Toys Be Toys, por anos você têm dito às crianças que garotos e garotas não devem ser definidos pelos livros que leem e os brinquedos que brincam, as roupas que usam, os jogos e hobbies de que gostam, e parabéns por isso. Agora — BUM — vocês estão dizendo a eles que não é a biologia que os fazem garotos ou garotas.

Então quando vocês dizem que não há um jeito certo de ser uma garota — presumidamente agora vocês acreditam que ser um garoto está incluído nisso?

De onde uma criança tira seu sentido de gênero?

Let Toys Be Toys, por favor me respondam isso: de onde uma criança pequena tira o sentido de gênero, se não de experiências sociais?

Como poderiam existir crianças transgêneros se não existissem estereótipos?

Quem te atingiu, ou se infiltrou na sua organização: quem está fazendo vocês traírem os princípios norteadores da criação do LTBT?

Eu não espero que a resposta venha, na verdade.

Pensei que nunca veria o dia em que a Mermaids e a Let Toys Be Toys estariam jogando no mesmo time.

Ovos de Páscoa à venda

Feliz Páscoa, criança generizada!


Tradução do texto de Lily Maynard