Bianca Andrade no BBB 20— uma análise feminista radical
Bianca Andrade no BBB 20— uma análise feminista radical

por Gabrielle Polary e Beatriz Garcia

Sim, eu sei. Como assim nós, mulheres que estudam sobre feminismo, lemos milhares de teóricas, c-o-m-o assim nós viemos aqui falar sobre o Big Brother Brasil? Bom, primeiro que nós vivemos em um mundo com mais de sete bilhões de pessoas, com redes sociais, e as coisas não passam despercebidas, e quer melhor exemplo do que o BBB para nos mostrar os comportamentos humanos? Sério, é uma aula de antropologia.

Então, se você vive neste mundo, sabe que o Big Brother Brasil 20 está rendendo assunto, e não é pouco, ainda mais depois de um início turbulento e a saída de um participante, Petrix, que foi inclusive convocado pela polícia do Rio de Janeiro a prestar depoimento por conta do assédio cometido contra a blogueira e empresária Bianca Andrade (conhecida como Boca Rosa). E é sobre ela que vamos falar aqui.

Bianca causa certo desconforto em quem a assiste porque sempre foi considerada um modelo de “Girl Power”: dona da sua própria marca de maquiagens, dona de uma canal do Youtube super bem sucedido, ela inclusive ganhou muitos prêmios e reconhecimento através da imagem “girl boss”. Na casa envolveu-se em uma polêmica decisiva que pode ser assim resumida: um grupo de homens decidiu traçar uma estratégia de jogo em que estimulariam que as mulheres comprometidas fora da casa se envolvessem romântica e sexualmente de forma a queimar sua reputação e causar eliminação do jogo. A trama foi descoberta por uma participante, que revelou tudo ao grupo de meninas, causando uma grande discussão, com direito a gritos e dedos na cara das mulheres no grupo de homens. E no meio disso tudo, Bianca simplesmente decide não apoiar mulheres ali presentes com ela no confinamento, o que gerou frisson e uma campanha intensa de “cancelamento” da participante. Inclusive, a hashtag que dizia “Fora Bianca” ganhou mais força do que a que pedia a expulsão de Petrix, o abusador.

E é justamente essa movimentação que merece aqui uma análise atenta sobre como funciona a socialização feminina, não é mesmo? Então vamos lá, alguns pontos a serem esclarecidos: 

A sociedade ama odiar mulheres. Bianca Andrade foi cancelada por reproduzir machismo — algo estrutural — e recebeu mais críticas do que os próprios opressores (um homem assediador, que se aproveitou da vulnerabilidade da própria Bianca, incluso).

A indignação diante da postura de Bianca, vinda por parte de muitos ditos militantes, é altamente questionável. Precisamos compreender o que existe por trás dessa “política de cancelamento” usada contra a participante: há consciência política por trás disso, ou apenas estão fazendo uso de uma bandeira para distribuir ódio gratuito a uma pessoa? Aliás, sendo mais específicas, a uma mulher — uma vez que a perda de seguidores de Bianca foi desproporcional à de Petrix, o homem que assediou ela e outra participante durante sua participação no reality. Existe vontade, por parte dos “canceladores”, de que Bianca mude sua postura? Ou a “síndrome da lacração” é mesmo apenas uma forma de receberem likes e aumentarem seguidores nas redes sociais, indo de acordo com as opiniões do senso comum, para satisfazerem o próprio ego ferido?

Sim, Bianca Andrade reproduziu machismo em rede nacional. Sim, ela escutou muito mais os homens e duvidou das mulheres. Sim, ela não demonstrou apoio às colegas de confinamento diante de uma situação de injustiça. Entretanto, fica a questão: o que existe por trás dessas atitudes? Poucas pessoas têm feito essa pergunta — algumas porque ainda não refletiram, outras porque simplesmente não se importam com as respostas. Nós, enquanto feministas, temos como necessidade urgente compreender a forma como as mulheres estão estruturadas em sociedade. E isso a posição de Bianca nos mostra. Os comportamentos da blogueira não são inatos; ela não nasceu simpatizando mais com rapazes e questionando as falas de mulheres. Na verdade, Bianca é uma vítima do que todas nós somos: da socialização feminina. Ela é cruel, ardilosa e dificilmente falha. Contudo — pasmem -, não foi Bianca Andrade que a inventou.

Socialização feminina é como a sociedade educa as mulheres para servir aos ideais masculinos. Somos — sim, todas nós — ensinadas a agir conforme os desejos do patriarcado. Uma das principais armas para a manutenção da supremacia masculina é justamente fazer com que nós cultivemos ódio umas pelas outras, que nós pensemos que somos diferentes, e não aliadas. As ações de Bianca dentro do Big Brother poderiam ser tranquilamente cometidas por nós ou por você, até mesmo em nosso mais elevado nível de conhecimento da teoria feminista. Nós não nascemos desconstruídas. A desconstrução é processual, diária e constante. Todos os dias, precisamos afirmar para nós mesmas quem é o nosso opressor. Todos os dias, precisamos reiterar que fazemos parte da mesma classe e, não, não somos rivais. Se as mulheres já viessem ao mundo prontas para enfrentar o patriarcado, essa revista não existiria. Bianca Andrade não inventou o machismo, como muitas pessoas têm feito parecer. Ela questionou a verdade de mulheres porque é assim que somos ensinadas a agir. Ela julgou ser mais propício e “leve” estar ao lado dos homens porque os nossos opressores trabalham para que nós nos mantenhamos longe uma das outras. Bianca Andrade reproduziu o machismo porque é uma vítima da socialização feminina assim como nós, assim como você.

É sempre importante dizer que mulheres não são machistas, mulheres reproduzem machismo, porque estamos inseridas em todo um sistema patriarcal que sempre nos fez acreditar que estamos erradas, que precisamos competir entre nós, que nos incita todos os dias a acreditar que somos culpadas. O boicote à Bianca nada mais é do que um reflexo da ideia de odiar mulheres, de que apenas umas “servem”, que estamos sempre erradas… repare que, ao cancelar a Bianca ficamos do outro lado, e que lado seria esse? Momento de refletir.

E outra, quando cancelamos uma mulher, em que desdobramento estamos falando? O patriarcado acaba quando uma mulher que apenas reproduz o machismo foi cancelada? A resposta é, indubitavelmente, não. Todas as circunstâncias narradas nesse texto mostram como tudo o que rege a vida e o comportamento das mulheres faz parte de uma estrutura. Para compreendermos a forma como nós, fêmeas, estamos estruturadas, precisamos ir até a raiz: quem é o nosso opressor? Pasmem! Não é Bianca Andrade. Assim como nós, assim como você, ela é apenas mais uma vítima do patriarcado. Que está pagando um preço injusto e desproporcional por ter reproduzido um discurso que não foi ela que criou, mas no qual ela — e todas nós — foi ensinada a acreditar. Mudar paradigmas perpassa por educação. Precisamos educar as mulheres sobre a opressão que sofremos. Fazemos isso com acolhimento e diálogo; não com retaliação.

Em suma: cancelar uma mulher não é nada feminista. Especialmente quando esse cancelamento revela a seletividade e o falso moralismo de uma sociedade que perdoa homens com facilidade e procura incansavelmente por motivos para odiar mulheres. É doloroso saber que as mesmas pessoas que aclamaram uma dita “união feminina” dentro do reality show são as mesmas que pedem para que Bianca saía do programa antes mesmo de homens que tiveram atitudes repudiáveis — como Pyong Lee, que assediou participantes na casa e que vem sendo exposto por casos de relacionamentos abusivos e violência contra ex companheiras, mas segue ganhando seguidores em seu perfil no Instagram.

A verdade é que as mesmas pessoas que aplaudem o movimento “girl power” (e punem Bianca com cancelamento) disseminam rivalidade feminina o tempo inteiro e destilam ódio para cima de Bianca e para qualquer outra mulher que apareça num futuro próximo. O feminismo foi capturado e está sendo usado de maneira errada e desonesta. Temos visto, aos montes, pessoas usando o movimento para justificar a propagação de tudo o que as verdadeiras feministas repudiam. Toda essa confusão acontece quando os mesmos que estão acusando “Boca Rosa” de não saber nada sobre a causa das mulheres também não se dedicam em ler um parágrafo sequer sobre teoria feminista. Mas é claro que é sempre melhor cobrar do outro. Ou melhor, da outra — homens parecem ter licença poética para fazer o que quiserem e terem seus atos graves e até mesmo criminosos esquecidos momentos depois.

Se você quer conhecer o feminismo, estude a teoria feminista. Uma dica: ela não está no BBB.

Se você quer agir como uma feminista ou como um apoiador da causa das mulheres, comece sabendo que nos odiar não é nada progressista.

No fim das contas, Bianca foi para o paredão inclusive com um dos que estavam armando a estratégia contra as mulheres, e foi eliminada. Nenhuma novidade nisso.

A sociedade ama odiar mulheres. 


Ilustração de Leandro Fanci