*spoilers*
“Às vezes para amar alguém você tem que ser um estranho,” Rick Deckard (protagonizado por Harrison Ford) professa bruscamente em frente ao seu whiskey (a mais masculina das bebidas) depois de uma luta estimulante, porém sem sentido com K (Ryan Gosling), o replicante que pensa que o ermitão em um cassino abandonado pode ser seu pai. Os dois homens se encaixam perfeitamente em todos os estereótipos que já vimos de homens nos filmes: heróis machucados que sentem suas dores, mas escondem. Nesse caso, K é um replicante criado para matar outros replicantes para previní-los de se revoltarem contra os mestres humanos, mas ele realmente odeia seu trabalho. Deckard abandonou seu amor e seu filha recém-nascida há anos, como parte de uma plano confuso de protegê-los, e não se sente bem com isso. Para que haja uma conversa genuína entre os dois que culmine na citação sobre amor de Deckard, os dois homens devem provar suas masculinidades primeiro — eles devem possuir esse momento emotivo por meio de uma luta violenta. Uma vez que eles tenham expressado suas virilidades pulsantes, os dois podem se sentar e tomar um drink.
A visão de Deckard sobre o amor é triste, mas faz muito sentido no contexto desse filme. Blade Runner 2049 retrata um mundo tão impregnado de misoginia que as mulheres estão sempre nuas e vulneráveis, ou são vadias assassinas. Os homens também não estão muito melhores: eles marcham lado a lado melancolicamente, cobertos de sangue e sujeira, seguindo ordens. Alguns são humanos, nascidos de mães, mas muitos são replicantes, androids bioprojetados poderosos, criados para o uso humano, feito para parecer, agir, e até a sentir convincentemente humano. Esse é um mundo em que ninguém possui seu próprio corpo, então o amor pode apenas significar ser um estranho. Dessa forma, Blade Runner 2049 faz o que as melhores ficções especulativas fazem: elas nos alertam sobre os perigos do mundo em que vivemos agora.
A pornificação e tecnologização do universo de Blade Runner é um reflexo pouco distorcido do nosso próprio mundo. Os corpos das mulheres são mercantilizados e objetificados, e aos homens é vendido uma fantasia capitalista de ascensão que mantém seus corpos em funcionamento. “Ninguém é livre sem a liberdade de amar,” escreveu o poeta George Elliott Clarke. Quando nossos corpos não nos pertencem — quando eles são controlados pelo capitalismo, patriarcado e pela supremacia branca — nós não estamos livres para sermos vulneráveis, ou para olharmos profundamente para alguém (quanto mais para nós mesmos) e amar o que vemos em seu âmago.
Muitos de nós preferem mandar mensagens de texto do que conversar — nós já vivemos em um mundo com avanços tecnológicos esmagadores e mais escolhas do que somos capazes de querer. Está mais fácil que nunca se conectar com outras pessoas apenas usando avatares cuidadosamente projetados, e nós somos ensinados a ver os corpos das mulheres como objetos para o uso do prazer masculino. Quando a modelo de prazer Mariette (Mackenzie Davis) repara que K anda por aí carregando sua namorada holográfica em seu dispositivo no bolso, ela aponta que ele não gosta de “garotas de verdade”. É claro que ele não gosta. Para que procurar por algo real quando mulheres “perfeitas”, que exigem basicamente nada dos homens, estão no cardápio?
Mas mesmo K não é livre. Ele é um replicante fabricado para obedecer. Ele não tem direitos às próprias emoções, quanto mais conexão com outro ser consciente.
Em seu livro All About Love, bell hooks cita o psicólogo John Welwood, que diz:
“Quando nos revelamos para nossos parceiros e descobrimos que isso traz cura, ao invés de sofrimento, nós fazemos uma importante descoberta — que as relações íntimas podem prover um santuário para as fachadas do mundo, um espaço sagrado em que podemos ser nós mesmos, do jeito que somos.”
Mas muitos de nós não chegam tão longe. É a nossa fraqueza, nossa dor e feiura que permitem que o amor e conexão aconteçam — a garantia de que somos aceitos pelo que somos, não pela utilidade que temos.
As mulheres de Blade Runner 2049 não podem se dar ao luxo da feiura ou da fraqueza. Seus corpos mal existem — Joi (Ana de Armas), um holograma, é literalmente transparente. Até mesmo Rachael, o amor perdido de Deckard do primeiro Blade Runner, a primeira replicante a engravidar, permanece a imagem perfeita e jovem na memória de Deckard (ele foge antes que ela possa se tornar indesejável por conta da gravidez, ou quem sabe, pela idade).
Como K, Gosling veste a dor e desconexão que ele sente enquanto um replicante, criado para matar, em seu rosto. Ele não pode falar sobre seu desejo por amor. O amor apenas encontra sua voz por meio de sua namorada não-corpórea Joi, um produto para trabalho emocional que tem como seu mote de propaganda “TUDO QUE VOCÊ QUER OUVIR. TUDO QUE VOCÊ QUER VER.” Ela sussurra os desejos mais profundos de K em sua orelha: que ele é especial, nascido, desejado, amado. Mas a verdade é que você não é amado quando seu corpo existe apenas o uso de outros.
K sente algo por Joi, mas ele parece entender o vazio na essência desse algo. “Eu fico tão feliz quando estou com você,” ela dispara, ao se “libertar” do apartamento de K pelo uso de um emanador (um dispositivo que permite que o holograma de Joi seja projetado sem fio, sem os confinamentos do equipamento em seu apartamento) “Você não precisa dizer isso,” ele diz. Ela se debruça para ele, no momento mais íntimo entre os dois que é interrompido por uma mensagem do chefe de K em seu celular. Joi congela o movimento no meio do abraço, olhos fechados, boca aberta, durante um longo e desconfortável momento. Ele atende o telefone e desliga Joi.
Mariette e Joi não são os únicos corpos no filme que foram projetados para o prazer masculino. Os corpos das mulheres são expostos, desejados, penetrados, assistidos, e inflados em proporções enormes — eles são projetados, afogados e cortados em pedaços. Ainda assim, fêmeas são “paridas”, mulheres adultas completamente formadas, saídas de um saco embrionário no escritório ilhado vil de Niander Wallace. Próximo de se tornar todo poderoso, Wallace está tão irado por sua incapacidade de criar um corpo feminino capaz de se reproduzir, que ele tritura o útero de sua replicante e a larga em dor mergulhada em seu próprio sangue.
A tensão central do enredo é a ideia de que a replicante — a Rachel de Deckard — pode e conseguiu se reproduzir. Os líderes da revolução dos replicantes acreditam que isso os concede o status de humano, com direito à liberdade. Wallace, por outro lado, vê o potencial reprodutivo como uma forma mais barata de se criar replicantes para o trabalho escravo.
Esse não é um conceito novo. Mulheres negras eram frequentemente estupradas por seus senhores brancos para criar mais escravos. (É válido notar que única atriz negra nesse filme não fala uma palavra sequer…) Nos séculos 16 e 17, a fome e a praga levaram a uma crise populacional que significava que não havia corpos o suficientes para fazer o trabalho capitalista, então a demanda da reprodução estava em alta. Isso contribuiu para a caça às bruxas, que visava, torturava e matava aquelas que poderiam ajudar as mulheres a ganhar qualquer tipo de controle sob suas capacidades reprodutivas, incluindo a contracepção e o aborto. Bebês não podem ser verdadeiramente uma expressão da autonomia corporal, da liberdade, nem da “humanidade” de alguém sob o patriarcado e o capitalismo — eles são entidades políticas.
A mercantilização dos corpos e a impossibilidade de amar presentes no filme chega provavelmente em seu ápice na estranha cena de sexo a três, quando Joi contrata Mariette, uma modelo de prazer e uma “garota real” para fazer sexo com K. A Joi holográfica se posiciona no corpo de Mariette e suas caras ficam dentro e fora de sintonia, uma mistura perfeita da “madonna” e da puta — a fantasia perfeita do patriarcado sendo atuada por meio das inovações da tecnologia capitalista projetada para vender às pessoas o que elas pensam que querem. “Uma evolução plausível da pornografia,” como chama Scott Meslow na GQ.
Se a intensa misoginia da distopia de Blade Runner é intencional ou não, é incrivelmente desconfortável de se assistir. Como uma “garota real” com emoções, dores, bagagem e, você sabe, pele, foi bem difícil aguentar uma cena de sexo a três que se parece com a fantasia de madonna/puta de qualquer homem, mesmo sabendo que (atualmente) não é possível tecnologicamente possível. Mesmo com a magnificência visual da cena, o sexo parece desconfortável para todos os envolvidos. Joi quer agradar a K, principalmente porque ela é programada para isso. Mariette também foi projetada para o prazer, apesar de possuir consciência e sentimentos (e uma agenda de espiã secreta). K parece meio confuso com toda a situação, eventualmente consentindo com relutância, como se estivesse falando consigo mesmo em sua cabeça, “Essa é a parte onde todo mundo finge que se importa comigo.” A composição da cara de Mariette/Joi varia entre determinação e tristeza enquanto ela tira suas roupas e caminha para K.
Não fica completamente claro se Joi tem consciência e sentimentos. O filme quase passa no teste Bechdel depois do sexo a três quando Joi diz, “Você pode ir agora, já terminei com você,” para Mariette, que responde, “Quieta agora. Eu estive dentro de vocês. Há menos aí dentro do você imagina.” O único momento em que Joi parece fisgar um breve momento de independência é quando ela nomeia K “Joe,” uma forma masculina de seu próprio nome. Até aquele momento, seu nome era apenas KD6–3.7, um tipo de nome de escravo dado por seus propósitos replicantes. Talvez houvesse algo nela que quisesse deixar uma marca, nomeá-lo, ter algum controle sobre seu mundo holográfico. Se Joi é capaz de amar, ela ama K porque ela a dá uma chance de uma pequena autonomia. Até o “amor” de Joi é dependente da utilidade da outra pessoa para ela.
Blade Runner 2049 acaba com uma nota de esperança… mais ou menos. K se sacrifica para que Deckard possa finalmente encontrar sua filha, o milagre da reprodução replicante. K não obedece às ordens de Freysa (Hiam Abbass), o líder da revolução replicante: matar Deckard para que a informação potencialmente comprometedora nunca chegue a Wallace. K pode intuir que nenhuma criança nascida nesse mundo será livre — ou ela seria forçada ao trabalho escravo, por um lado, ou pelo serviço militar do exército replicante, por outro. Ou talvez ele entenda ninguém é realmente livre se não for livre para amar. Talvez ele simplesmente deseje morrer sabendo que facilitou alguma forma de conexão, nesse caso entre Deckard e sua filha Stelline. Essa conexão representa o melhor que essas personagens, e talvez qualquer um de nós, podemos esperar, e ela acontece através de uma parede de vidro esterilizado.
Julie Peters é uma escritora e dona de um studio de yoga em Vancouver, BC. Ela possui uma mestrado em literatura canadense da McGill University e escreve sobre poesia, yoga, cultura pop e mitologia sob uma perspectiva feminista. Ela tem uma coluna bisemanal na Spirituality and Health Magazine, e seu primeiro livro,, Secrets of the Eternal Moon Phase Goddesses: Meditations on Desire, Relationships, and the Art of Being Broken foi publicado pela SkyLight Paths em 2016. Saiba mais em www.jcpeters.ca.
Tradução do texto de Julie Peters para o Feminist Current