“It is the lesbian in us…” foi publicado na terceira edição da revista literária de arte por e para lésbicas, Sinister Wisdom. É o discurso que Adrienne Rich fez em 1976, em um palestra na Modern Language Association, com June Jordan, Audre Lorde e Honor Moore. Foi publicado em outros livros da autora, como On Lies, Secrets, and Silence: Selected Prose 1966–1978 (1995, W. W. Norton & Company). Depois do discurso, Rich adicionou uma pós-nota para ser publicado junto com o texto original, onde conta da experiência do discurso e como isso a fez ver como outras mulheres enxergam as lésbicas dentro de si próprias. O original pode ser lido no final da tradução, onde coloquei o fac-símile do texto na terceira edição da revista.
É a lésbica em nós…
Adrienne Rich
Nasci em 1929. Naquele ano, Virginia Woolf escrevia sobre a necessidade de uma literatura que revelasse “aquela vasta câmara onde ninguém esteve” — a esfera das relações entre mulheres.
Tudo aquilo que não é nomeado, que não é representado em imagens, tudo o que é omitido de biografias, censurado em coleções de cartas, que é erroneamente chamado de outra coisa, que é difícil de encontrar, que está enterrado na memória pelo colapso do significado sob uma inadequada ou linguagem mentirosa — isso se tornará, não apenas não dito, mas indizível.
Duas mulheres, uma branca, uma Negra, foram as primeiras pessoas que amei e que soube que me amaram. Ambas cantaram-me minhas primeiras músicas, contaram-me minhas primeiras histórias, tornaram-se meu primeiro entendimento de ternura, paixão e, finalmente, rejeição.
Cada uma delas, ao longo do tempo, me entregou ao julgamento e disposição de meu pai e de sua cultura: branca e masculina. Meu amor pela mulher branca e pela mulher Negra tornou-se indistinto de raiva, desprezo e culpa. Eu não sabia qual delas havia me machucado; elas se fundiram em minha fúria inarticulada. Eu não sabia que nenhuma delas teve escolha. Nem sabia o que havia acontecido entre nós — e dentro de nós — era importante. Era indizível.
Eu achava que a biblioteca do meu pai era a fonte e o local de seu poder. Eu tinha razão. Nela tinha Plutarco e Havelock Ellis, Ovídio e Spinoza, Swinburne e Emerson. Naquela biblioteca passei a acreditar — a crença de uma criança, mas também a de uma poeta — de que a linguagem, a escrita, as páginas impressas, poderiam me ensinar a viver, poderiam me dizer o que era possível. Mas sobre os assuntos dos relacionamentos entre mulheres, nas palavras de Emily Dickinson: “Meus Clássicos cobriram seus rostos”. (E ainda, na maioria dos cursos de literatura, na maioria das bibliotecas, dos programas de estudos, dos currículos — mulheres jovens recebiam os clássicos que escondiam não apenas o que pode ser possível, mas o que está acontecendo desde sempre.
Em um ensaio impressionante, a romancista Bertha Harris escreveu sobre o silêncio em torno da mulher lésbica:
A mulher lésbica, sem literatura, não tem vida.
Às vezes é pornográfica, às vezes a marca de um medo,
Às vezes um floreio sentimental, ela… flutua no espaço…
sem esse apego à terra onde o crescimento é composto.
Ao ler seu ensaio, descobri que ela descreveu, pela primeira vez, minhas próprias pesquisas no passado através da literatura em busca de uma realidade tremeluzente, muitas vezes disfarçada, que ia e vinha pelos livros de escritoras. Essa realidade não era nada tão simples e desprezível quanto o fato de que duas mulheres poderiam ir para a cama juntas. Era uma sensação de desejar-se, acima de tudo, de escolher a si mesma; era também uma intensidade primária entre mulheres, essa intensidade que no mundo em geral era banalizada, caricaturada ou vista como mal.
Mesmo antes que eu soubesse que eu era lésbica, foi a lésbica em mim que buscou essa configuração elusiva. E acredito que é a lésbica em toda mulher que é compelida pela energia feminina, que gravita em torno de mulheres fortes, que busca uma literatura que expresse essa energia e força. É a lésbica em nós que nos motiva a nos sentirmos imaginativas, a compreender na linguagem a plena conexão entre a mulher e a mulher. É a lésbica em nós que é criativa, pois a filha obediente dos pais em nós é apenas uma reprogramação.
Foi a lésbica em mim, mais do que a libertária civil ou mesmo a feminista, que buscou a memória da primeira mulher Negra que amei antes que me ensinassem a branquidade, antes de sermos forçadas a trair uma a outra. E esse relacionamento — conhecimento mútuo, medo, culpa, ciúme, raiva, saudade — entre Negras e brancas, eu não encontrei, ainda não encontrei na literatura, exceto, talvez como um começo, em Meridianos, de Alice Walker, e em alguns dos poemas de Audre Lorde. Não encontrei nenhuma mulher Negra na literatura, apenas fantasias delas por brancos ou por homens Negros. Mas algumas escritoras estão agora começando a se atrever a entrar naquela câmara específica do “indizível” e a respirar a notícia daquilo que lá estamos encontrando.
Continuo acreditando no poder da literatura e também na política da literatura. A experiência da mulher Negra como mulher, da mulher branca e Negra como antagonistas no drama patriarcal, e das mulheres Negras e brancas como lésbicas foi mantida invisível por um bom motivo. Nossas vidas ocultas, mas onipresentes, tiveram algum propósito permanecendo ocultas não apenas no mundo patriarcal branco, mas nas comunidades Negras e feministas, da parte de críticos Negros quanto dos estudiosos, de editores e instituições como a Feminist Press. Tanto os estudos sobre os Negros quanto os Estudos femininos se esquivaram desse núcleo de nossa experiência. reforçando, assim, o próprio silêncio do qual eles tiveram que se afirmar. Mas são os assuntos, as conversas, os fatos de que evitamos, que nos reivindicam na forma de bloqueio do escritor, como mera retórica, como histeria, insônia e aperto na garganta.
PÓS-NOTA
Essas observações foram lidas na Modern Language Association em 28 de dezembro de 1976, num evento noturno co-patrocinado pela Women’s Commission (Comissão das Mulheres) e pelo Gay Caucus (Comitê Gay). As quatro palestrantes eram June Jordan, Audre Lorde, Honor Moore e eu. O objetivo do painel era tornar acessível, para um grande público, questões de racismo e homofobia no ensino da literatura, questões com as quais a Women’s Commission lutava coletivamente há mais de um ano. (O texto completo do painel está sendo publicado pela Women’s Commission do MLA [Modern Language Association]).
Quando terminei de falar, ficou claro que houve uma reação imediata à minha declaração de que “é a lésbica em nós que é criativa, pois a filha obediente dos pais em nós é apenas uma reprogramação”. Ficou claro, durante a discussão, que diferentes mulheres ouviram esta frase de diferentes maneiras. Algumas mulheres disseram que criaram, a partir de sua bissexualidade, seu lado não feminino; outras, que criaram, a partir de seu compromisso com a luta Negra; outras, por amor a seus filhos tanto quanto por amor pelas mulheres. Uma lésbica afirmou que, se a “lésbica em nós” se tornasse um termo figurativo, ela — como uma mulher que tinha sido oprimida por amar fisicamente mulheres — queria outro nome para quem ela era. Algumas mulheres me ouviram dizer que toda criação tem uma base sexual (vide Freud) e que mulheres podem criar apenas a partir da experiência erótica com outras mulheres. Minha intenção era, claro, dizer algo mais amplo.
Acredito que, ao preparar minhas observações, falhei em permitir a carga intensa da palavra lésbica, e por todas suas deliquescências de significado, que vão desde a “odiadora de homens” e “pervertida” até os conceitos que eu estava tentando invocar, como a mulher segura de si mesma, a “intensidade primária” proibida entre as mulheres, e também da mulher que se recusa a obedecer, que disse “não” aos seus pais. Provavelmente simplifiquei demais a questão, dando limites de tempo e, portanto, a obscureci. Essa experiência me tornou mais consciente do que nunca do grau em que, mesmo para lésbicas, a palavra lésbica tem muita ressonâncias. Algumas destruíriam completamente a palavra, outras transformariam, outras ainda reclamam e falam que, mesmo depois de anos, são incapazes de expressá-la. Algumas feministas foram obrigadas a temer serem percebidas e desacreditadas como lésbicas; algumas lésbicas se retiraram ou foram forçadas em territórios não-feministas, que rejeitam e denigrem mulheres “heterossexuais”.
A lésbica/feminista vive em uma esfera muito complexa e exigente de distinções linguísticas e relacionais. Uma das tarefas à nossa frente é começar a tentar definir essas distinções (e a sobreposição da experiência feminina que as acompanha). Seria mais fácil para alguns se todas as lésbicas pudessem ser rotuladas de “separatistas”, sugerindo que a política e a autodefinição procedem primeiro do ódio e da rejeição de outros (sejam homens ou mulheres “heterossexuais”). Seria mais fácil, mas destrutivo, para o feminismo e, finalmente, uma negação da nossa complexidade. Temos que nos perguntar constantemente se estamos mais preocupadas com o que estamos dizendo “não” do que com o “sim” que estamos dizendo a nós mesmas e descartá-lo é colaborar com o silêncio e mentir sobre a própria existência, o jogo-do-armário, a criação do indizível.
Sinister Wisdom é uma revista literária e de arte lésbica multicultural que publica quatro edições por ano. Desde 1976, a Sinister Wisdom trabalha para criar um espaço lésbico multicultural e multiclasse. A revistaprocura abrir, considerar e avançar na exploração das questões da comunidade lésbica e reconhece o poder da linguagem para refletir nossas diversas experiências e aumentar nossa capacidade de desenvolver um julgamento crítico como lésbicas avaliando nossa comunidade e nosso mundo.
Adrienne Rich comprou a revista e foi editora nos anos de 1981, 1982 e 1983 junto com parceira, Michelle Cliff. Atualmente, Julie R. Enszer é a editora da Sinister Wisdom. Para preservar a história lésbica, as edições de número 1 à 77 estão disponíveis para download, em PDF, no site da revista. Clique aqui para ver.
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Tradução de “It is the lesbian in us…”, discurso de Adrienne Rich na Modern Language Association (1976)