Nós somos seres sociais. Isso significa que não vivemos isolados, mas em uma sociedade, na qual temos algumas regras a cumprir para o funcionamento dela. Chamamos de socialização o processo pelo qual internalizamos essas regras sociais.
É pela socialização que aprendemos alguns dos valores básicos da sociedade e ela começa já quando nascemos. Aprendemos, ainda muito pequenos, que transgredir regras é passível de punição, por exemplo, e que se desobedecemos podemos ser castigados.
Nem todas as regras aprendidas por meio da socialização são declaradamente desejadas pela sociedade, mas as aprendemos da mesma forma. Não adianta apenas que nos ensinem “não minta”, quando todas as pessoas ao seu redor, especialmente adultos, estão mentindo para terem algum ganho, por menor que seja.
Para ficar no mesmo exemplo anterior, aprendemos que mentir, dissimular ou achar alguém em quem botar a culpa é um modo de se livrar da punição. Assim, temos regras explícitas, como “não transgredir”, e regras implícitas, como “minta e se safe”. Por meio de experimentos e observações, ainda na infância, aprendemos que essas são as regras da sociedade: essas são as que funcionam não importa o que nos digam.
Socializamos crianças para a sobrevivência delas e para a manutenção da ordem social. Nem sempre o que é apenas sobrevivência e o que é valor adquirido estão separados. Pegar coisas no chão e levar à boca pode ser seguido de um tapa na mão do bebê. Aos poucos aprendemos que não devemos fazer isso, ou vamos apanhar. Nesse processo aprendemos que existe certo perigo em comer coisas do chão, mas junto a isso aprendemos também que o tapa é algo que costuma vir das pessoas responsáveis por nos cuidar. As mesmas pessoas que nos beijam, nos batem. E assim associamos já amor e violência desde muito pequenos. Esses valores permeiam nossa vivência, mesmo que não seja a intenção de quem o fez, mas são valores que mantém o funcionamento da sociedade; no caso, violência como forma de se obter um comportamento desejável.
Socialização de grupos específicos de pessoas
O exemplo que usei acima é algo que toda a nossa sociedade aprende: transgrida e será punido; mas a verdade é que nem todas as pessoas aprendem que as mesmas coisas são transgressões sociais. Já ouvi pessoas ricas, por exemplo, dizendo que “a sonegação de imposto é autodefesa”, o que é uma grande balela, é claro. Imposto é distribuição de renda e é um absurdo que ricos não paguem proporcionalmente a parte deles. Mas o importante aqui é que realmente a sociedade não considera a sonegação por parte de ricos como transgressão social, eles não são punidos por isso, ainda que possa ter uma lei que diga que todos serão tratados igualmente. Para uma pessoa pobre, a sonegação de impostos pode ter consequências graves em diversas instâncias da sua vida, somos efetivamente punidos por esse tipo de coisa.
Quanto mais sofisticada a estratificação social, mais regras para grupos próprios vão haver. O ser humano se desenvolveu por meio da construção de sociedades cada vez mais complexas, com papéis bem específicos destinados a cada grupo de pessoas, mas existe uma divisão muito básica que permeia praticamente toda sociedade humana, essa é a divisão sexual do trabalho. O sexo é o primeiro grande divisor de papéis na sociedade.
Socialização para os papéis sexuais
Ainda bebês, somos ensinados que alguns comportamentos são desejáveis e outros devem ser refreados, mas não aprendemos todos as mesmas coisas. Os primeiros estímulos ou desencorajamentos que os bebês têm comumente estão relacionado ao sexo deles. Um bebê do sexo masculino é encorajado a escolher certos brinquedos e repudiar outros, por exemplo. Muitos dos brinquedos e das brincadeiras das crianças são treinamentos para a vida. Os “faz de conta” geralmente são uma forma de as crianças aprenderam sobre a sociedade em que vivem.
Pense num boneco. Um boneco é um brinquedo que imita um ser humano, seja a representação de um bebê ou de um adulto, é aparentemente inofensivo, feito apenas para que as crianças façam histórias sobre a vida nas suas cabeças. Agora pense em que boneco você daria para um menino e em que boneco daria para uma menina. Uma boneca que imita um bebê, quem teria mais chance de ganhar? E um boneco que imita um soldado? E um que imita uma mulher adulta preocupada com moda e beleza?
Um bebê sem regras de socialização muito claras vai escolher qualquer um, provavelmente o mais próximo ou o mais colorido. Mas uma criança pequena a quem muitas vezes já foi dado um desses brinquedos, e retirado das mãos o outro, vai tender a escolher aquele que os adultos já consideraram correto para ela. Um menino, por exemplo, vai olhar e escolher o soldado, talvez nunca lhe deram a opção da boneca bebê, ou quando ele pegou uma dessas na mão, foi tirada dele e talvez tenha ouvido uma regra como “isso não é para meninos” ou até uma zombaria como “está virando menina, é?”.
Meninos aprendem que brinquedos para eles são aqueles que estimulam a competição (jogos em geral e esportes), a violência (bonecos de guerra e arminhas), o perigo (aviões e carrinhos, que muitas vezes trombam e dão piruetas), entre outros. Meninas aprendem que brinquedos para elas são os que estimulam a vida doméstica (casinhas e eletrodomésticos), a maternidade (bonecas bebês), a preocupação com a aparência (maquiagem e bonecas que trocam roupinhas), entre outros.
Nenhum desses interesses são de nascença. Todos eles são aprendidos, são estimulados ou desestimulados, encorajados ou reprimidos. Uma criança não se interessa por guerra ou por moda por causa da natureza de seu sexo, mas porque ela foi ensinada que esses são interesses que ela deveria ter, e que os tendo ela está num caminho desejável no qual será recompensada. Assim, um menino que brinca de guerra não será zombado, conseguirá se misturar aos seus pares na sociedade, formará uma turma de amigos, será visto como normal; ao passo que um que queira brincar com bonecas bebês, via de regra, enfrentará grande dificuldade no convívio social.
Esse exemplo é uma forma simples de entender como se dá a socialização para os papéis de sexo, mas essa socialização vai além dos brinquedos. Ela passa também por observação dos adultos que nos cercam. A maioria de nós vemos as mulheres à nossa volta como cuidadoras das crianças, sejam nossas mães, avós, tias, professoras primárias, funcionárias da creche e, nas famílias mais abastadas, babás e empregadas domésticas. Quase sempre são apenas mulheres que cuidam das crianças, e isso nos leva a internalizar a regra de que cuidar de crianças é trabalho de mulher, por mais que nos digam que é trabalho de todos.
Outro exemplo é pelo que as crianças escutam. Para as crianças em geral, ensinamos que ser obediente e educado é uma característica positiva, mas não tratamos meninos e meninas da mesma forma quando não seguem essas regras. Meninas levam broncas quando gritam ou correm; enquanto meninos, quando fazem o mesmo, escutam “menino é assim mesmo”. Além disso, quando as meninas agem de acordo com características desejáveis para elas, muitas vezes escutam elogios relacionados à aparência: “que linda, tão educada”; e dessa forma vamos internalizando que a aparência das meninas e mulheres é algo muito importante e relacionado à nossa personalidade e agir (isso também se dá pela observação das mulheres adultas à nossa volta, sempre comentando aparência e preocupadas com isso).
Seja por observação, escuta ou experimento, nós aprendemos as regras sociais do que é aceitável para nós. Assim crescemos e desempenhamos papéis diferentes na sociedade a partir de nosso sexo. É pertinente dizer que, vivendo numa sociedade patriarcal, esses papéis servem para manter a submissão das mulheres aos homens (ou o domínio de homens sobre mulheres). Mulheres passam assim a dedicarem um tempo enorme ao cuidado: da casa, das crianças e dos próprios homens adultos com quem têm contato. Aos homens é permitido simplesmente abandonar a casa quando estão de saco cheio, seja por apenas uma noitada no bar, seja para deixar esposa e filhos para sempre. As mulheres, por mais que possam estar estafadas, ficam. Não nos é permitido abandonar ninguém.
Aos homens é permitida a liberdade (existem outros eixos de opressão que podem cercear as atividades de um homem, como classe social ou raça, mas nada lhes é negado por serem homens). Eles podem ser violentos. Mulheres não podem nem exercer direitos básicos sem que sejam submetidas ao escrutínio público. Muitas vezes, nem mesmo comer, sem ter um comentário sendo feito sobre seu corpo.
O comportamento sexual das mulheres também é vigiado e está no cerne dessa estrutura. Nós não podemos nos relacionar com quem quisermos sem que isso nos traga prejuízo social. Não podemos decidir sobre nosso corpo, porque isso significaria certa liberdade sexual, que o patriarcado não está disposto a nos dar.
É assim que somos socializadas para determinados papéis que devemos cumprir e a maioria de nós cumpre sem questionamento. A sociedade funciona nessa estrutura patriarcal que está muito arraigada justamente porque nos é ensinada ainda quando somos muito pequenos, e vamos passando isso para frente, às vezes sem nem nos darmos conta.
A educação feminista
Os papéis sexuais que aprendemos podem mudar de sociedade para sociedade, mas praticamente todas têm coisas que consideram desejáveis para homens e outras coisas para mulheres e que, de alguma forma, mantêm a estrutura patriarcal. Esses papéis sexuais foram descritos por feministas de meados do século XX, constituindo o conceito de gênero.
O gênero seria, assim, uma ferramenta do patriarcado. Quando dizemos que somos abolicionistas de gênero, queremos dizer que queremos o fim dos papéis sexuais, que não queremos mais mulheres submissas e homens opressores, queremos liberdade. E conseguimos isso por meio de uma educação feminista.
Ensinar às crianças, independentemente de seu sexo, que todas elas devem ser responsáveis, que todas devam se interessar pelo cuidado, que nenhuma delas deve amor para ninguém, que violência não é aceitável, que todas podem brincar das mesmas coisas, que o gosto dos outros não é motivo para desrespeito e zombaria, parar de perguntar às meninas de que menino elas gostam (e vice-versa)… Todas essas coisas são um primeiro passo para uma educação mais libertária.
A educação feminista é realmente desafiadora nessa sociedade, porque você falará de uma forma contrária a toda instituição social. Você falará que a solidariedade é desejável e a escola vai ensinar competição. Você dirá que a criança pode brincar com qualquer brinquedo, mas outras crianças poderão reprimi-la. Você falará que todos devem ter a mesma responsabilidade com cuidados e toda família que a criança conhece mostrará para ela que isso é tarefa de mulher. Você falará que beleza não importa e toda a mídia vai dizer outra coisa. Mas, por mais difícil que possa ser, é possível. Temos que começar, podemos ter uma socialização diferente.