Depoimento de Liliam Altuntas, sobrevivente da exploração sexual e do tráfico de pessoas
Liliam Altuntas, sobrevivente da exploração sexual e do tráfico de pessoas
  • O depoimento abaixo foi dado por Liliam Altuntas, que, ainda criança, foi sequestrada e forçada à prostituição no Brasil, e depois traficada para a Alemanha, para o comércio sexual e contém detalhes descritivos de abuso sexual. Liliam hoje mora na Itália, é designer de bolos e ativista abolicionista da organização Resistenza Femminista. A tradução do depoimento para o português foi feita pela própria Liliam, para a publicação na revista QG Feminista, e revisada por mim.

De todas as tragédias que vivi quando estava na prostituição, há duas coisas que continuam a me atormentar, que ainda não consigo superar. São experiências traumáticas que arquivei em minha mente, mas que ainda estão lá, dentro de mim, embora eu viva minha vida tentando ignorá-las.

A primeira. Tenho cerca de 19 anos e estou na Alemanha há 4, fui vendida por uma organização criminosa no meu país, o Brasil, para uma organização alemã, que me obriga a me prostituir. Dois italianos me alugaram para um fim de semana, mas no quarto onde marcamos para nos encontrarmos havia 7 homens. Eles me amarram, eles me estupram, eles mijam em mim; depois me levam para o banheiro, me lavaram e começaram tudo de novo. Uma provação que dura horas e horas, parece não ter fim. Anos depois, em um trem a caminho de uma cerimônia de premiação em Perugia, por acaso, vi um de meus estupradores. Eu o reconheço por uma tatuagem inconfundível de um índio sob a lua. Ele olha para mim, mas não me reconhece, porque ao longo dos anos ganhei peso e minha aparência mudou muito. Queria ir até ele, perguntar-lhe: “lembra-se de mim?”. Queria falar pra ele: “tá vendo? Eu estou viva, embora você e seus amigos tenham me destruído naquele dia”. Em vez disso, me levanto, cheia de dor e raiva, e mudo para um compartimento diferente. Ao chegar ao hotel em Perugia, não consigo parar de chorar. Posso me ver na frente dele, paralisada, sem conseguir gritar diante dele de dor, me sinto uma covarde. Ainda hoje não consigo me perdoar por não ter confrontado ele. E é como uma camada adicional de humilhação em cima do que ele e seus amigos infligiram a mim naquele maldito quarto.

A segunda remonta à minha infância no Brasil. Não tenho nem 10 anos e sou prisioneira em uma vila perto de Fortaleza, junto com outras crianças escravas sexuais, crianças de rua como eu, enganadas e sequestradas, por capangas mandados por Madame, a dona do bordel. Somos drogadas, estupradas por homens repulsivos, clientes importantes dos quais ela se orgulha. Quando a “carne fresca” chega, Madame liga para todos os seus clientes, e eles fazem fila do lado de fora da porta e estupram a recém-chegada, um por um. Se nos rebelamos ou tentamos escapar, ela nos designa para seu cliente mais sádico, que gosta de infligir choques elétricos em órgãos genitais e mamilos. A Villa é uma espécie de Auschwitz do sexo: há a sala do dentista quando um homem de jaleco branco tira os nossos dentes sem anestesia e penetra-nos enquanto o sangue escorre da nossa boca. Tem a sala do ginecologista onde um homem nos faz deitar com as pernas abertas, e coloca um espéculo dentro de nós e depois insere todos os tipos de objetos. E então há o pior quarto de todos, o quarto do diabo: um determinado cliente nos visita frequentemente, sempre vestido de preto e usando um crucifixo com a cabeça de Cristo apontando para baixo. Ele só vem para a Villa quando uma garota morre, morta por perda de sangue ou alguma outra doença. Ele acende velas ao redor da garota morta e força os vivos a acariciá-la e beijá-la enquanto ele invoca Satanás. Então ele penetra tanto nas garotas vivas quanto no minúsculo cadáver. Uma vez ele veio com outros dois e eles torturaram um menino de apenas 4 anos até a morte. Além dele, outro necrófilo costuma visitar o quarto do diabo: um texano (Madame o chama de “meu cowboy”) que sempre usa uma máscara de Satanás para não ser reconhecido. Ele amarra cada um de nós em uma cruz, com nossas cabeças apontando para baixo, então ele pega uma galinha ou um gato e corta sua garganta enquanto ainda está vivo, respingando em nossos corpos com seu sangue, e ele faz o mesmo com a garota morta que ainda deve estar quente para que ele possa oferecer sua alma a Satanás através da penetração. Depois disso, ele nos obriga a lamber o corpo da garota morta e limpar o sangue e esperma que a cobriram. Eu tenho uma amiga lá, Priscila, com quem consigo — pelo menos por breves momentos — esquecer os horrores dos quais somos vítimas de todos os dias. Brincamos, dançamos, nos divertimos como se fôssemos crianças normais. Nós fantasiamos sobre nosso futuro fora da Villa. Um dia percebo que há uma grande comoção lá em cima: alguém chama Madame, seus capangas estão mobilizados, algo deve ter acontecido. Aproveitando a confusão geral, subo as escadas e me esgueiro para o quarto do diabo: e lá, deitada na mesa de tortura diante de Madame, seu guarda-costas e o cowboy, está Priscila, morta. Estou me afogando em uma onda de dor. Por que não consegui salvá-la? Por que ela está morta e eu continuo a viver? E para quê? Ainda hoje não consigo falar sobre isso sem chorar.

Quando eu era prostituta, vivia com um sentimento constante de nojo, porque os clientes com quem eu ia, cada um diferente do outro, todos tinham suas próprias fantasias sexuais, e me esmagavam a alma: mijavam em mim, faziam eu engulo coisas que não gostava… A prostituição é como uma forma de descarrego para pessoas com problemas de saúde mental, emocionais e sexuais. Entre meus clientes havia também aqueles com fantasias masoquistas, aqueles que nem me olhavam na cara, que me fodiam e depois iam embora, aqueles obcecados com os órgãos genitais e buscando aprovação (me perguntavam: “é grande? pequeno? Você pode sentir isso?”), essencialmente todos os tipos de pessoas. Eles nem sempre me olharam como apenas um objeto: de vez em quando, eu poderia encontrar um cliente que estava preocupado com o meu prazer ou que tinha medo de me machucar. Ou quem poderia até me convidar para comer ou beber juntos, mas essa era uma pequena minoria, menos de um por cento. Minha relação com meu próprio corpo durante a prostituição foi de punição: eu bebia e usava drogas porque tinha nojo de mim mesmo. Anfetaminas, LSD, cocaína, maconha. Fumei muitos baseados. E Martini, antes, durante e depois, para ajudar a “digerir” o que eu estava fazendo. Aí, quando saí da prostituição, me permiti engordar. Queria engordar para não chamar mais a atenção de ninguém, para não cair em tentação e aprender a ser fiel a um só homem. Engordar era uma forma de proteção contra minha necessidade obsessiva de ter um corpo ao meu lado, de ser amada. Não era uma necessidade sexual, mas uma necessidade de afeto, mesmo apenas de ser abraçada. Agora que estou gorda, me sinto mais livre para conseguir o que quero apenas com minha força, por meu próprio mérito. Se alguém quer namorar comigo, é porque me vê como uma pessoa com ideias, não apenas um corpo.

Já pensei algumas vezes em suicídio, mesmo depois de ter saído da prostituição e ter me casado com um alemão, Martin. Tínhamos uma relação tumultuada, caracterizada por drogas e discussões contínuas. Eu sentia como se tivesse um buraco dentro de mim, que eu não conseguia preencher. A prostituição me fez viver por tantos anos em uma dimensão paralela, na qual eu não havia crescido e amadurecido emocionalmente. Isso me deixou sem as ferramentas para lidar com a vida cotidiana. E então, em uma ocasião, do nada, abri a janela do meu quarto e me joguei do sétimo andar. Pousei no teto macio de um Mercedes conversível e quiquei em um canteiro de flores cheio de girassóis. Sem fratura, só um traumatismo craniano e um quadril deslocado: um grande golpe de sorte, ou talvez um milagre… Quando me casei pela primeira vez, não estava pronto para um casamento, ainda tinha a mentalidade de uma garota perdida, uma prostituta, eu só sabia interpretar os papéis que os compradores queriam: a faxineira, a mãe, a dominatrix que os punia… Nos jogos que me faziam jogar, eu não era eu mesma, sempre fui outra pessoa. Meu primeiro casamento fracassou, psicologicamente eu estava mal preparada, por causa de toda a bagagem que carregava na alma. No meu segundo casamento, com um turco, tentei ser a mulher perfeita: assistia a filmes turcos, queria aprender a ser uma boa esposa observando o comportamento das mulheres muçulmanas. Consegui manter isso por alguns dias, depois voltei para a pessoa que era antes. Embora eu tivesse deixado a prostituição e fosse fiel ao meu marido, não tinha as habilidades básicas e educação sobre como me relacionar dentro do casamento.

A prostituição molda toda a sua vida, incluindo sua vida romântica e sexual, e continua a moldá-la mesmo quando você desiste. Não é fácil passar da “vida sexual” na prostituição para a de uma pessoa normal. Com meu último marido, por exemplo, sempre tive vontade de fazer sexo, pois é a única forma que conheço de dar e receber atenção e carinho. Se ele recusasse, eu me sentia inútil e era tomada pelo medo de perdê-lo. Tive a ideia de que só era possível fazer um homem feliz por meio do sexo. Não há dignidade nem paz na prostituição, mesmo quando é aparentemente voluntária. Conheço muitas mulheres que dizem que a fazem por opção, que escolhem seus clientes e os hospedam em seu apartamento: na verdade sentem nojo do que fazem, e é por isso que escolhem seus clientes, para tornar tudo mais suportável. A necessidade de selecionar clientes demonstra que a prostituição é nojenta, mesmo para quem a faz “voluntariamente”. É um caminho que você faz apenas para ganhar dinheiro, porque você não tem alternativa e não encontra oportunidades reais. A prostituição masculina também decorre da necessidade de ganhar dinheiro, mas para um homem pode parecer uma espécie de troféu pago por uma mulher. Um acompanhante masculino é visto de forma diferente de uma prostituta, há menos estigma social associado e ele pode até ser visto como uma espécie de garanhão.

Até eu, por um tempo, quando adulta, estive em prostituição “voluntariamente”, e eu sei o que significa ter esse sentimento de independência, ser livre de cafetões, ser capaz de pagar coisas que de outra forma você só seria capaz de ver à distância. Você pensa “este trabalho é meu suor, sangue e lágrimas, meu corpo, e ninguém jamais poderá tirar isso de mim”. Você se sente forte e orgulhosa de si mesma. A realidade é que você precisa de muita força para ser prostituta, para ir para a cama com um homem que você nunca viu antes, fazer o que ele quiser, sorrir para ele, ser legal com ele, e é a partir desse sacrifício que você se desenvolve um sentimento de orgulho pelo que você faz. Mas é uma ilusão, é como um anúncio enganoso. A realidade é que não há diferença entre o acompanhante que escolhe e a prostituta de rua: são todas escravas, todas exploradas da mesma forma. Uma mulher que diz que faz voluntariamente se aprisionou, ela não viu alternativa, se meteu e não sabe como sair.

Há mulheres que encontram uma maneira de se sentirem bonitas e desejadas por meio da prostituição, das lisonjas e elogios que recebem pela aparência. É normal que um comprador bajule uma prostituta com palavras que aumentem sua autoestima, porque aquela mulher é doce e gentil com elas, ela ouve seus problemas. Mas essa satisfação não é real, é apenas uma ilusão de que a mulher na prostituição precisa para superar o fato de ser usada, a falta de alguém que realmente a queira de forma altruísta. Há homens que só buscam o sexo e outros que querem criar um pouco de atmosfera e, assim, regar a mulher com elogios para que ela se sinta satisfeita com o que faz. Mas é autoengano. A prostituição é como uma droga, dá uma descarga de adrenalina, é um estimulante: você sente aquela felicidade momentânea de poder comprar as coisas que quiser. Mas a adrenalina não dura muito: quando você está sozinha em sua cama à noite, a depressão se instala. Ninguém te aceita. Nenhum homem quer uma mulher que faz este “trabalho” ao seu lado. Há até mesmo o risco de que um de seus amigos queiram te prostituir.

Quando me prostituía “voluntariamente”, também acreditava na regulação, porque pensava nas vantagens que poderia ter em termos de respeito pelo que fazia. Eu tinha certeza que ninguém mais poderia falar comigo com desrespeito, se o estado reconhecesse meu sacrifício, eu me sentiria mais protegida. Mas com o tempo comecei a perceber que a regulamentação não eliminaria o estigma social associado à prostituição. Não funciona assim. Pense no racismo: apesar de todas as leis destinadas a erradicá-lo, ele ainda persiste. Mesmo que a prostituição fosse uma profissão reconhecida, não ganharia respeito como tal, as pessoas continuariam a se perguntar por que uma prostituta escolheu fazer isso em vez de ser, digamos, uma cuidadora ou faxineira, e continuaria a desprezá-las. E aí, com a regulamentação, as prostitutas seriam ainda mais exploradas: teriam que pagar tributo ao Estado, seguro, aluguel, e ficariam com muito pouco no bolso. Definitivamente não seria um trabalho com o qual você pudesse ficar rica. Seria escravidão legalizada. Tanto na Alemanha quanto na Nova Zelândia, as prostitutas, do ponto de vista econômico, estavam em melhor situação antes que a prostituição se tornasse um trabalho reconhecido. Além disso, os donos do bordel, graças ao regulamento, sentem-se mais fortes, têm o estado do seu lado, e a prostituta é reduzida ao silêncio, elas não podem lutar mais.

É verdade, todo trabalho tem sua própria dose de humilhação. Um profissional pode se sentir humilhado por um cliente desrespeitoso, por exemplo. Mas esses são momentos. Para uma prostituta é diferente: a humilhação é contínua, pode ser causada por um cliente ou por qualquer pessoa que descobre o seu passado e se recusa a ter qualquer coisa a mais para fazer com você. Ainda espero que a minha vida mude: tenho fé, confio em Deus e nos Orixás e nos seus planos para mim, e continuo a olhar para a frente, para a luz.

Você sabe o que eu sonho hoje? Em me livrar do meu medo constante de ser abandonada. em ter uma família. E em abrir uma escola onde possa ensinar o que sei (sou confeiteira), voltada para mulheres e meninas que saíram do comércio sexual, ou de outras situações de violência. Aquelas de nós que conheceram o trauma da prostituição precisam de alguém que nos escute, com paciência, e nos dê a chance de reconstruir nossas vidas. Precisamos de solidariedade. Que é o que encontrei nas associações Iroko e Resistenza Femminista, das quais agora também sou ativista. Luto ao lado de minhas irmãs pelo modelo nórdico: devemos reconhecer que a prostituição é violência e que os clientes são estupradores, e oferecer programas de saída a todos aqueles que se prostituem, com verdadeiras oportunidades de trabalho. Hoje me orgulho de quem sou, não sou mais uma vítima e, sim, uma sobrevivente, uma lutadora que não precisa mais sentir medo ou vergonha — coisas que só os perpetradores de tamanha violência deveriam sentir — e gostaria de transmitir essa força a todas aquelas mulheres ainda presas na prostituição. É por elas que escolhi falar e mostrar minha cara, por todas as mulheres e crianças que vi morrer no comércio sexual. Enquanto uma mulher for explorada na prostituição, nenhuma mulher pode ser verdadeiramente livre