A sexualidade é política sob um sistema de supremacia masculina


Julie Bindel — sonora jornalista, incansável ativista feminista radical e lésbica política — tem estado na vanguarda de nossa Campanha Desplataforma, que visa abordar a desplataforma de feministas radicais por organizações que buscam silenciar nossas vozes. A desplataforma também será tema da palestra de Julie na conferência Radfems Resist organizada pelo Radfem Collective, que acontece em setembro, no centro de Londres. O novo livro de Julie, “Expectativas Hétero”, examina o movimento gay e lésbico no Reino Unido e as maneiras pelas quais ser gay é cada vez menos visto como uma escolha política e pessoal, mas algo biologicamente predeterminado desde o nascimento. Na entrevista abaixo, ela fala sobre a despolitização da sexualidade, a importância do desmantelamento do gênero e seu atual trabalho em torno da prostituição e suas percepções em todo o mundo.

Que papel o lesbianismo político desempenha na libertação das mulheres?

As lésbicas políticas são realmente cruciais, porque fomos nós que primeiro dissemos que as mulheres deveriam ser capazes de determinar sua própria sexualidade. Nós fomos aquelas que disseram que todas as mulheres podem ser lésbicas e que a heterossexualidade é compulsória sob um sistema de supremacia masculina. Nós fomos as que disseram que até que as mulheres tivessem uma escolha livre, nós teríamos de falar sobre a heterossexualidade como uma imposição, e não como livremente escolhida. Isso é completamente diferente do mantra das chamadas feministas “pró-sexo” da terceira onda, que afirmam que somos antissexo e púdicas. Lésbicas políticas eram as que diziam às mulheres: “você pode ser lésbica, pode ser não-monogâmica, pode ter muito sexo, com muitas mulheres, você pode gostar de sexo e não precisa ser algo que é imposto sobre você, pelo tipo de homem que pensa que as preliminares é como desempacotar as compras”.

Então, acho que o lesbianismo político tem um papel crucial porque diz às mulheres que a sexualidade é política sob um sistema de supremacia masculina.

Ele nos diz que os atos sexuais são todos políticos e que nenhum deles é insignificante. E também define claramente o fato de que a equidade e o prazer sexual significativo podem ser alcançados com muito mais facilidade com as mulheres do que com os homens sob este sistema.

As feministas radicais deixaram de analisar o desejo e a sexualidade de uma forma transformadora?

Nós costumávamos falar sobre política sexual, ao invés de prática sexual. Mas o que os libertários fizeram quando pegaram emprestada a cultura gay masculina dos EUA foi que eles se concentraram obsessivamente na prática sexual e erotizaram a desigualdade, a subordinação, a dor e o domínio. Nós costumávamos falar sobre: “por que as mulheres são heterossexuais?” e “o que é lesbianismo?” — porque nós não gostamos da definição dada pelas não-feministas de que era apenas sobre sexo, que era apenas algo que você era, algo que você não podia deixar de ser, que era algo que você estava programada para ser e que era menos desejável do que ser hétero.

O chamado feminismo radical via a heterossexualidade sob o patriarcado como massivamente problemática, porque beneficiava os homens e desfavorecia as mulheres. Isso significava que a estrutura da família era aquela que tinha o homem como chefe da casa — mesmo que ele não fosse um dinossauro, mesmo que ele se considerasse bastante progressista. Isso significava que ele fazia coisas com ela, sexualmente. Isso significava que ela faria piada com as amigas, como as escritoras antigas tipo Marilyn French delinearam, sobre ela muitas vezes ter de engolir sapos e calar a boca, e deixá-lo continuar com as coisas. Isso significava que ela não estava realmente querendo ou desfrutando, de modo que ele compraria uma nova máquina de lavar roupa para ela se fossem de classe média; ou, se fossem da classe trabalhadora, de modo que ele lhe desse o salário no final da semana.

Feministas radicais desbancaram todo esse significado sobre sexualidade e política sexual, e ao mesmo tempo encorajaram e permitiram que as mulheres realmente conversassem sobre sexo de uma forma muito íntima que não era voyeurista ou de qualquer forma exploradora aos outros. Então, nos grupos de conscientização, as mulheres perguntariam umas às outras se elas tinham orgasmos e, se não, por que achavam que era esse o caso. As mulheres perguntariam a outras mulheres se elas já haviam realmente explorado seus próprios corpos, ou se seus corpos eram vistos apenas como pertencentes a seus Maridos.

Era realmente e incrivelmente poderoso poder estar com outras mulheres e não se sentir envergonhada ou inibida sobre sexo ou sobre partes íntimas dos nossos corpos. E isso era feminismo radical.

Como desmantelamos o gênero?

Temos que nos livrar disso. Não faz sentido tentar reformá-lo. Seria como dizer que poderíamos reformar o partido conservador. Nós só precisamos abolir e obliterar isso.

Precisamos parar de falar sobre isso como se fosse uma coisa importante. Precisamos começar a rir daqueles que fingem que de alguma forma substituíram o sexo biológico e deixar de ter medo de apontar que os dois são completamente diferentes e que, na verdade, não existem fora do domínio masculino e da subordinação das mulheres. Porque todo gênero é uma imposição de subordinação às mulheres, e o oposto disso é a dominância dos homens, que obtêm privilégios por nascerem do sexo masculino, e nós ficamos com o oposto. Então eu acho que temos que começar a rir disso, e não vestindo um tutu e botas de operários; mas, de fato, dizendo que essa ‘coisa’ não é real.

É um pouco como a teoria da Terra Plana. Espero que, nos próximos anos, nós estejamos rindo da noção de que realmente acreditamos que era algo tangível.

Quão importante você acha que é a lei para a libertação das mulheres?

Cada vez mais, até mesmo algumas feministas radicais estão descartando o sistema de justiça criminal ao lidar com a violência dos homens contra as mulheres. Eu sou tão contra os maus policiais quanto qualquer outra pessoa de esquerda. Mas sou pró-policial, porque sei que estamos sendo estupradas, assassinadas, abusadas, vendidas como escravas e tendo os nossos genitais fatiados. Eu absolutamente me recuso a criticar um serviço policial, sou crítica de um mau policiamento. E estou absolutamente até as tampas de ter sido informada de que, por não termos muitas condenações por estupro ou condenações por maus-tratos infantis, devemos olhar para outras formas de lidar com a violência dos homens em relação às mulheres. Estou com furiosa com esse tipo de mediação, ou reconciliação, com homens que cometem esses atos.

A verdade é que não há lugar para a reconciliação para lidar com a violência dos homens em relação às mulheres e meninas, porque a verdade sobre a reconciliação é que, na conciliação, você está dizendo que é parte do problema.

Eu acho que a lei tem um papel crucial a desempenhar, porque nós, feministas, podemos mudar a lei, não somos cidadãs sem poder. Nós elaboramos leis, mudamos leis, abolimos leis, introduzimos leis.

E o outro lado sempre as usou, por mais anarquistas e bacanas que eles se façam parecer. Por isso, precisamos melhorar o que consideramos eficaz, precisamos de pessoas do lado de fora e de dentro e precisamos usar nossas especialistas muito bem.

Andrea Dworkin acreditava que a pornografia era a força motriz da supremacia masculina. Esta análise é ainda pertinente na sua opinião?

Bem… sim e não. Nós não falamos suficientemente sobre prostituição. Eu sei que parece uma coisa estranha de se dizer em nosso mundo, porque não falamos de mais nada além de prostituição. Mas acho que falamos sobre os problemas da pornografia como se ela estivesse fora do comércio sexual e como se as mulheres não estivessem prostituídas dentro dela. Então eu substituiria a palavra “pornografia” pelas palavras “o comércio sexual”.

Andrea era do seu tempo. E é claro que não houve o movimento feminista forte, abolicionista e liderado por sobreviventes que existe agora, que se recusa a aceitar que a pornografia não é nada além de prostituição sem uma câmera. Então eu mudaria essas palavras, e acho que Andrea também. Também porque a indústria pornô agora é provavelmente o que Andrea imaginou que se tornaria em seus piores pesadelos.

A heterossexualidade sobreviverá à libertação das mulheres?

Não, a menos que os homens ajam juntos, tenham seu poder tirado deles e se comportem. Quero dizer, eu realmente colocaria todos em algum tipo de acampamento onde eles poderiam dirigir em quadriciclos, bicicletas ou vans brancas. Eu daria a eles uma escolha de veículos para dirigir por aí, não lhes daria pornografia, eles não poderiam lutar — nós teríamos guardas, é claro! As mulheres que querem ver seus filhos ou seus entes queridos poderiam ir visitá-los ou pegá-los como um livro da biblioteca e depois trazê-los de volta.

Espero que a heterossexualidade não sobreviva, na verdade. Eu gostaria de ver uma trégua na heterossexualidade. Eu gostaria de uma anistia sobre a heterossexualidade até que tenhamos nos separado. Porque sob o patriarcado é uma merda.

E estou farta de ouvir de mulheres individuais que seus homens são OK. Esses homens foram protegidos pelas vantagens do patriarcado e eles são complacentes, eles não estão impedindo outros homens de serem merdas.

Eu adoraria ver a libertação de uma mulher que resulta em mulheres se afastando dos homens e dizendo: “quando vocês voltarem a ser humanos, aí a gente se vê outra vez”.

Atualmente, você está fazendo novas pesquisas na África sobre prostituição. Você pode nos contar um pouco sobre isso?

Eu estou indo para diferentes países ao redor do mundo e observando a maneira como as pessoas entendem a prostituição, e de quem elas obtiveram esse entendimento. Então eu estive na África, Ásia, em toda a Europa, América do Norte e estou indo para a Índia em breve. Eu quero dar uma olhada em diferentes modelos legais.

Meu livro não é tanto sobre os horrores do comércio sexual, embora as histórias de sobreviventes (e há muitas sobreviventes que entrevistei) deixem claro que é horrível. O livro é mais sobre como chegamos ao estágio em que anticapitalistas de esquerda, ou pessoas liberais decentes, apoiam uma indústria capitalista tão vil que produz mulheres e meninas, e meninos e homens, como pedaços de carne de hambúrguer.

Tendo em mente que a maioria das pessoas que eu estou entrevistando, se não são cafetões ou traficantes e afins, são seres humanos decentes e comuns. Eu quero saber por que eles estão dizendo coisas como: “devemos legalizar a prostituição, é melhor para as mulheres”. Eu quero saber por que eles estão dizendo que os homens precisam pagar pelo sexo. Eu quero saber o que eles realmente sabem sobre como é o comércio sexual. E então eu quero descobrir como o movimento dos direitos das profissionais do sexo definiu essa narrativa, e dominou e colonizou essa narrativa.

A boa notícia no livro é ver como o movimento feminista, abolicionista, liderado por sobreviventes, está implodindo e abrindo a coisa toda. E a Anistia é deprimente, essa decisão é deprimente. Mas também é muito animadora, porque expôs quão fortes nos tornamos, as abolicionistas feministas, e que força temos para enfrentar. E nós vamos pegá-los, vamos ganhar. Essa decisão da Anistia estimulou muita atividade e acho que podemos dizer honestamente, pela primeira vez, que temos um movimento abolicionista feminista forte, próspero e crescente baseado nos direitos humanos, e que está unido globalmente.

Na Conferência Radfems Resist, você vai falar sobre a desplataforma de feministas radicais. No passado, você descreveu a desplataforma como uma forma de macartismo que procura silenciar as vozes das feministas radicais em toda uma série de questões. o que você acha que são as implicações da liberdade civil de negar plataforma para as mulheres?

Eu costumava acreditar em desplataforma para certos indivíduos quando eu era jovem, idealista e brava. Lembro-me de agitar cartazes e me juntar a um piquete contra Jean Marie Le Penn, que apareceu em Leeds e ia falar em algum lugar. Eu não tinha escrúpulos em fazer isso. Agora não tenho tanta certeza, e não é por causa do tratamento que tive, nenhum pouco. E há algumas pessoas que obviamente violam a lei com seu discurso, seja David Irving negando o Holocausto ou aquelas que incitam a violência e o assassinato.

Mas agora acho que precisamos ouvir as pessoas, e precisamos ouvir as feministas com as quais discordamos também, para que possamos realmente começar a entender de onde elas vêm e por que, para que possamos, então, quebrar o absurdo que elas estão despejando.

Porque, vamos encarar isso, sabemos que estamos certas — estamos aprendendo o tempo todo e mudamos de opinião sobre todos os tipos de questões estratégicas, mas o feminismo radical é senso comum.

Por um lado, você tem idiotas como Laurie Penny, que está simplesmente aparecendo com as coisas que ela faz porque sabe que os grupos que ela está apoiando, que são pró-trans, pró-comércio sexual, e pró-outras coisas sem noção anti-mulheres, são dirigidas por homens liberais poderosos e de alto perfil. Sabemos que ela está fazendo isso por uma mudança de carreira. Mas a grande maioria das mulheres que emitem esse tipo de bobagem está fazendo isso porque estão com medo do feminismo que diz que elas têm de nomear os homens como o problema, porque elas sabem o castigo que receberão se o fizerem.

Portanto, as implicações das liberdades civis de retirar plataformas para feministas radicais são enormes, porque não conseguiremos nossas liberdades civis até que realmente alcancemos nossos objetivos como feministas radicais. Se não conseguirmos incluir as feministas mainstream, não teremos números suficientes, então temos que trabalhar com essas mulheres. Nós temos que de alguma forma passar por seus porteiros que são ativistas hostis dos direitos dos homens e pornógrafos violentos como Ana Spam. Temos que encontrar uma maneira de falar com elas para que elas possam entender e apreciar nossas ideias e saber que elas serão apoiadas.


Entrevista feita em 2015, pelo RadFem Colective (UK)