Durante a preparação de um jantar, a senhora iraquiana me conta que brasileiro faz tabule errado: tem que colocar muita salsinha. Não é pouco, não, é muita salsinha mesmo!

De fato o tabule dela é puro gosto de salsinha, mas é bem melhor que todos os outros que já comi. Entre receitas e experimentações, ela fala sobre como veio parar no Brasil. Ela era diretora de uma escola no Iraque. Os filhos já eram adultos, ela vivia uma vida tranquila, estava esperando dar os anos para se aposentar. E a guerra começou. Uma guerra que ela não tinha o menor interesse em participar. Uma guerra que não era nada dela, que não tinha nada a ver com proteger os interesses dela.

Primeiro a escola foi fechada. Depois não havia mais escola. Depois casas da vizinhança se foram. E, de repente, também não havia mais vizinhos. E ela empacotou meia dúzia de coisas e foi embora. Nunca mais viu suas outras coisas. Uma vida inteira se foi provavelmente numa bomba que ela não esperou para ouvir. Primeiro, ela foi pra Europa, mas teve dificuldades lá. Um filho sugeriu o Brasil e ela veio. Ele se casou aqui, ela tem um neto brasileiro.

A dificuldade de uma pessoa de 50 anos que nem entendia o alfabeto que a gente usava em recomeçar, ela disse que eu nunca poderia compreender. Uma pessoa que era instruída e amava estudar agora era analfabeta, ela disse.

Recomeçar foi realmente o que fez. Lá se vai mais de uma década de tentativa de sobrevivência completamente fora do que ela tinha imaginado pra si… Lá no Iraque, no caminho da escola pra sua casa, num fim de tarde tranquilo.

Em São Paulo, as etnias e nacionalidades do Oriente Médio viram todas “árabes”, herança xenófoba perpetuada na cidade, que apaga identidades de vários grupos. Em São Paulo, “árabe” faz comida pra vender. É assim com minhas vizinhas, elas vieram da Síria, moram com alguns homens da família, mas eles falam pouco. As mulheres da casa puxam papo comigo. Abriram um restaurante “árabe”. Conforme foram melhorando de vida, encheram o restaurante com pôsteres de fotos da Síria antes da guerra. Fotos de uma Damasco que talvez jamais voltarão a ver. Fotos de uma Alepo que não existe mais.

Eu não sei se minhas vizinhas deixaram parentes para trás, eu nunca perguntei por receio. As conversas são corriqueiras, do tipo que a escada da casa não é muito segura ou que tabule tem mesmo que ter muita salsinha.

Eu fico pensando nisso, em como é cruel deixar tudo pra trás, não só as coisas que você juntou durante sua vida, mas também as pessoas com quem você convive, por quem sente afeto. Na feira da praça Kantuta, tem uma barraquinha que ajuda os imigrantes a acharem parentes perdidos que vieram pro Brasil. É uma feira principalmente de pessoas oriundas da Bolívia, mas é possível encontrar outras nacionalidades.

Grande parte dos imigrantes bolivianos em São Paulo não têm status de refugiados. Isso significa que o Brasil considera essas pessoas ilegais. Não ter essa documentação faz deles um grupo especialmente vulnerável para o trabalho escravo. E isso não é nem segredo.

Eu me lembro de que um domingo à noite, andando no Brás, em direção à festa de São Vito, uma deliciosa festa da comunidade italiana, com barracas de comidas espalhadas pela rua, passei em frente a uma loja de roupas. A loja estava com todas as luzes acesas no fundo e achei esquisito. Fui olhar. Pela janela se viam dezenas de mulheres com feições andinas trabalhando. Algumas em máquinas de costura, algumas com agulhas na mão. Domingo. À noite.

O Brás já foi local de exploração de trabalho de imigrantes europeus no século passado. Agora é de andinos. A indústria têxtil segue sendo a principal atividade do local. No bairro vizinho, Bom Retiro, também a produção têxtil emprega pessoas com condições análogas à escravidão, e também imigrantes, coreanos especialmente.

A condição de refugiado talvez pudesse ajudar essas pessoas a conseguirem um emprego que não seja tão exploratório. Quem decide sobre os pedidos de refúgio no Brasil é o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), que reconhece como legítimos pedidos motivados por perseguições (por raça, religião, nacionalidade, atividade política etc.) ou violação generalizada dos direitos humanos (guerras, desastres naturais etc.) nos países de origem do asilado.

Assim, bolivianos em geral não formam um grupo que geralmente têm o pedido de refúgio acatado. E acabam tendo seus direitos humanos constantemente violados em território brasileiro. Um ser humano jamais deveria ser considerado ilegal.

Esse é um mundo que dá mais liberdade para a circulação de mercadorias do que de pessoas. Assim, pessoas que são mercadoria conseguem trânsito que de outra forma não conseguiriam. Ano passado, a um quilômetro da minha casa, encontraram umas moças coreanas vítimas do tráfico de pessoas sendo forçadas a se prostituírem. Foi no bairro da Liberdade. Formado especialmente pela colônia japonesa, mas que agora abriga muitos coreanos e chineses também. Eu passo em frente a esse local com relativa frequência e não consigo parar de pensar em como podia isso acontecer bem embaixo do meu nariz e eu nunca desconfiar? Mas a verdade é que deve acontecer com mais frequência do que consigo imaginar.

Atualmente, em São Paulo, a maioria das pessoas que têm status de refugiados são de Angola (dados de 2018 das pessoas atendidas pela Cáritas). De Angola também vem a maioria das mulheres refugiadas em São Paulo. O mais comum é que refugiados cheguem na cidade e se estabeleçam no centro, local de aluguéis mais baratos, e depois se desloquem para a Zona Leste, também em bairros mais pobres da cidade. O centro é onde moro e também local de todos os bairros que citei aqui. Quando se passeia pelo centro da cidade de São Paulo, você vê gente vinda de toda parte. Perto da praça da República se concentram pessoas originárias de países da África. As mulheres ali geralmente vendem tecidos. Tecidos muito coloridos, com estampas que dizem lembrar suas terras.

A crise criada e constantemente reforçada por potências estrangeiras na Venezuela aumenta o número de pessoas que decidem deixar aquele país, muitas vêm pra cá, afinal, temos uma fronteira e uma falsa promessa de melhoria. É da Venezuela que hoje são a maior parte das pessoas recém-chegadas com pedido de refúgio na cidade. A maior parte é indeferida.

Conheci uma venezuelana com status de refugiada. O caso dela era atípico porque não era simplesmente uma pessoa fugindo de crise econômica, como a maioria das pessoas do seu país que vem para o Brasil, ou como a maioria das pessoas do Brasil que se arriscam em viagens inseguras para os Estados Unidos.

O marido dessa mulher foi perseguido por fazer oposição a políticos locais de seu município. Não vou dizer qual era o partido de cada um, porque não vem ao caso, não quero que julguem com preconceitos, nessa sociedade punitivista que tem sangue nos olhos pra dizer “eles mereceram”.

O caso é que sequestraram o casal. E mantiveram a mulher separada do marido sob tortura física e psicológica. Eu não sei o que aconteceu ao homem, não o conheço. A mulher não sabia de nada que perguntavam a ela, mas isso não importava. Aos torturadores, nada importa além do sadismo.

Eu me lembro como ela começou contando essa história como quem conta que foi à feira, com tranquilidade corriqueira de uma história comum, até que chegou na parte sobre tortura sexual, daí encheu os olhos de lágrimas e parou… E resumiu: bem, fizeram coisas horríveis. Ela não conseguiu verbalizar essa parte. Depois de alguns dias de cativeiro, abandonaram ela sem roupa num campo aberto, e ela andou até uma rodovia pra tentar uma carona. Nua. O marido veio para o Brasil e conseguiu o refúgio. Ela o seguiu tempo depois, trazendo a filha criança junto.

Eram jornalistas, aqui faziam artes circenses nos faróis para pedir trocados aos milhões de carros da cidade. São Paulo é a cidade brasileira com maior número de residentes refugiados. Em 2013, 20 crianças em São Paulo que estavam sozinhas (órfãs ou perdidas de seus pais) pediram refúgio. As mulheres refugiadas são minoria, cerca de 1/3 de todos os refugiados.

As mulheres correspondem à metade dos refugiados no mundo, mas a maior parte delas vão para países vizinhos e não costumam cruzar oceanos ou fazer longas jornadas. Especialmente porque várias vezes há outras pessoas sob seus cuidados, como crianças, idosos e doentes. Além disso, mulheres sofrem mais ameaças que os homens durante seus trajetos em busca de refúgio, de modo que suas jornadas são mais perigosas. O Brasil, estando longe da maioria dos países que estão sob conflito que geram refugiados, acaba não sendo um destino especialmente buscado por mulheres e, por isso, aqui há muito mais homens refugiados.

No governo atual, ainda ficamos menos atrativos, visto que o racismo e a xenofobia são incentivados em nível nacional pelo presidente da república. A ascensão de ideias fascistas torna o mundo ainda mais inseguro para mulheres refugiadas. Se buscamos um mundo justo para as mulheres, que promova a emancipação de todas nós, precisamos estender nossos laços de solidariedade e deixar de dar grandes importâncias às fronteiras nacionais.

Fontes:
ACNUR/UNHCR. Georreferenciamento de Pessoas em Situação de Refúgio Atendidas pela Caritas Arquidiocesana de São Paulo em 2018. São Paulo, 2019.
ACNUR/UNHCR. Global Trends: Forced Displacement in 2018. Genebra, 2019.
BRASIL. Lei 9474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências.
CONARE. Refúgio em Números 4a Edição. Brasília, 2018.
IPEA. Refúgio no Brasil: caracterização dos perfis sociodemográficos dos refugiados (1998–2014). Brasília, 2017.