(Tradução do texto de Gail Dines para Feminist Current)
Enquanto “The Handmaid’s Tale” dá um aviso criando uma distopia com viés feminista, “Hot Girls Wanted: Turned On” mostra o que acontece quando permitimos que nosso movimento seja cooptado pelo patriarcado.
Foram lançadas na semana passada, duas séries que, a primeira vista, parecem contar duas histórias completamente diferentes sobre as mulheres.
A série documental da Netflix Hot Girls Wanted: Turned On (HGWTO), produzida pela mesma equipe que criou o documentário de 2015 Hot Girls Wanted, foi descrita por boa parte dos críticos de mídia como tendo uma abordagem com mais nuances sobre indústria pornô que o documentário anterior, mostrando como mulheres podem se empoderar tanto atuando, quanto produzindo filmes pornôs.
A série da plataforma Hulu, “The Handmaid’s Tale” por outro lado, é um relato “ficcional” de uma distopia patriarcal, em que mulheres não podem trabalhar ou possuir propriedades, e servem ou como barrigas de aluguel, empregadas, serventes ou esposas troféus. Aquelas que resistem, são exiladas em aterros tóxicos ou lugares piores. Atwood confirmou várias vezes que seu livro, de mesmo nome, no qual a série é baseada, não é na verdade uma ficção — ela se inspirou em acontecimentos vivenciados por mulheres ao redor do mundo.
Então, enquanto HGWTO se propõe a mostrar que nós podemos ser melhores que homens no jogo deles, The Handmaid’s Tale mostra como os homens venceram as mulheres e nos sujeitaram à submissão. O contraste parece drástico.
Mas na realidade, os dois programas têm implícito, um tema em comum: que o verdadeiro papel da mulher é ser penetrada. Em HGWTO mulheres são penetradas para gerar dinheiro; em The Handmaid’s Tale mulheres são penetradas para gerar bebês. Ambas as narrativas transmitem uma forma determinismo biológico; que mulheres são recipientes sexuais subordinados cujo principal propósito é o de servir aos desejos dos homens. Em ambas as séries, são as mulheres que, em nome da irmandade, fazem o trabalho sujo dos homens ao desempenhar os papéis de bedel ou capataz do controle da vida de outras mulheres.
O primeiro episódio de HGWTO mostra a “pornógrafa feminista” Erika Lust devagar liricamente sobre como as mulheres precisam tomar conta da própria sexualidade e se tornar pornógrafas também. A fábula contada no episódio por Lust é de que quando as mulheres estiverem por trás das câmeras, elas poderão produzir filmes artísticos de pegada “erótica”, que dialoguem com as fantasias sexuais das mulheres, ao invés do foco do pornô convencional em homens enfiando seus pênis nos orifícios das mulheres. Esse episódio foi cuidadosamente produzido para contar a história da libertação das mulheres da sociedade patriarcal por meio do empoderamento do sexo pornográfico. Mas essa narrativa se desenreda rapidamente, uma vez que vemos o que Lust realmente quer dizer com “pornô feminista”.
A ideia de Lust, que tende mais para a bizarrice, de um filme “erótico” atraente para as mulheres foi a de retratar uma pianista vivendo sua fantasia de tocar piano pelada, enquanto recebe “prazer”. Então Lust encontra Monica, uma mulher que é uma pianista e está disposta a viver essa fantasia planejada por Lust. O problema é que Monica é nova na pornografia e não tem experiência, e, para contracenar com ela, Lust contrata um ator pornô profissional, resultando na tradicional degradação do sexo pornô — incluindo penetração violenta e puxões de cabelo. Monica termina a cena obviamente traumatizada e sofrendo, parecendo um cervo nas luzes do farol de um caminhão vindo em sua direção. Mas lembre-se, esse é um “pornô feminista”, então Lust, agindo toda amiguinha, dá um abraço em Monica e um copo d’água pra que ela se sinta melhor. E depois pede que ela finja um orgasmo pra cena final. É demais pra autenticidade da sexualidade feminina!
Doeu o estômago ver Lust manipular e persuadir Monica a fazer o filme, e mentir na cara dura enquanto explicava que ela estava fazendo algo diferente dos garotos. Apesar de qualquer debate sobre o valor estético e da sexualidade feminina, HGWTO é apenas um produto inteligente de propaganda ideológica. Lust, assim como os garotos, está faturando ao explorar sexualmente outras mulheres; diferente dos garotos, ela se envolve em uma bandeira feminista apenas como uma forma de diferenciar a sua marca em um mercado inflado. No mundo de Erika Lust, sororidade é poderosa porque ela serve de capa para prostituir mulheres em nome do feminismo.
A duplicidade de Lust caberia perfeitamente na República de Gilead, no país fictício de The Handmaid’s Tale. As “Aias” são mandadas para um tipo de acampamento chefiado pelas “Tias”, que fazem o trabalho sujo dos homens. As “Tias” manipulam e convencem as Aias a acreditarem que elas estão do mesmo lado, treinando as Aias para desempenhar o papel divino de produzir bebês. É claro que, se uma Aia ousa sair da linha, existe uma gama de recursos semelhantes aos da produção de gado que as Tias usam para manter as Aias na submissão. E quando uma Aia cumpre sua função de reprodução, as Tias estão presentes para um abraço solidário.
Assistir aos dois programas me fez lembrar do que Mary Daly chamou de “a síndrome do ritual sádico do patriarcado” , que é quando as atrocidades contra as mulheres são ritualizadas para tornar invisíveis sua humanidade e sofrimento. Um elemento chave do ritual é uma “obsessão com a pureza”. No pornô e em The Handmaid’s Tale, as mulheres são cerimonialmente “banhadas”, mesmo que de formas diferentes. O “banho” de Monica é representado por depilação, contornos, maquiagem profissional e cabeleireiros que, em conjunto, a transformam em uma versão genérica hipersexualizada de atriz pornô, apagando no processo sua identidade e individualidade. As Aias, por outro lado, devem se purificar em uma banheira e depois vestir uma camisola especial para a “cerimônia”, um termo Orwelliano para descrever o estupro pelo senhor.
Outro elemento chave nessa ritualização é o uso de mulheres como “torturadoras token”, que de acordo com Daly, ao mesmo tempo retira a responsabilidade dos homens e coloca as mulheres contra si mesmas. Lust e outras “pornógrafas feministas” falam como se elas estivessem produzindo conteúdo erótico para mulheres quando, na verdade, os filmes pornôs que elas produzem servem ao olhar masculino e ao prazer sexual masculino. Similarmente, as Tias e seus recursos são a primeira linha de controle, mas existe, nos bastidores, um batalhão de homens empunhando suas metralhadoras, esperando por um movimento fora da linha para assassinar uma mulher.
Em uma cena reveladora em The Handmaid’s Tale, a narradora nos conta que ela não pode confiar em ninguém, nem em outras Aias, que também podem ser agentes do estado. Com o feminismo sendo cada vez mais açucarado pela ideologia neoliberal, que reformula a indústria do sexo em empoderamento sexual feminino, nós temos que questionar: Será que nosso movimento foi de tal forma sequestrado e colonizado, que agora ele se tornou o produtor de Aias para o patriarcado?
Link para o texto original https://www.feministcurrent.com/2017/05/01/the-handmaids-tale-offers-a-terrifying-warning-but-hijacking-feminism-just-as-dangerous/